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O anexo IV da Câmara dos Deputados me recebeu com ares de curiosidade. A diversidade de gênero não costuma dar as caras naquele ambiente estéril e formal. Não tive dificuldades na entrada do prédio, mas logo fui aconselhadx por um servidor a utilizar o banheiro masculino, em caso de necessidade. “Tudo muito retrógrado por aqui”, ele comentou, em tom de lamento.
O clima nada receptivo ganhou novos matizes no gabinete da deputada federal Erika Kokay (PT -DF). Pelas paredes, adesivos a favor das famílias homoafetivas, dizeres contrários ao racismo, elementos indígenas. No canto esquerdo da antessala, uma imagem de Frida Kahlo adornada por pinceladas coloridas. Ao lado, uma foto de Che Guevara. Na mesa da deputada, um retrato de Dilma Rousseff. Entre os diplomas e certificados, destaca-se uma fotografia na qual Erika abraça Lula.
E foi ali que conversamos sobre o impeachment, Jean Wyllys, direitos da população LGBTTT, erros e acertos do PT. Foi ali que a deputada definiu a oposição como um “fascismo crescente” e “um balé macabro articulado pela batuta de Eduardo Cunha”.
>> Entrevista // Erika Kokay
Você foi a única a votar contra o impeachment. Sente-se solitária na política do DF?
Eu me lembro muito da fala do Darcy Ribeiro quando ele diz: “Várias vezes, o povo brasileiro foi derrotado. Os indígenas foram derrotados. Os negros foram derrotados pela escravidão”. E perguntavam a ele como se sentia. Ele respondia: “Eu não quero estar ao lado dos vitoriosos”. E eu digo e repito: não quero estar do lado dos vitoriosos. São golpistas. No domingo, tivemos um desnudamento deste parlamento. Ficou muito clara a necessidade de uma reforma política. Temos uma estrutura oligárquica, abaixo do marco civilizatório. As pessoas exaltando os filhos, as mães, as igrejas, torturadores!
Um panorama fundamentalista…
Exato. Um fundamentalismo religioso que rompe a laicidade do Estado, hierarquiza os seres humanos, que aprisiona o beijo, o afeto. Um fundamentalismo patrimonialista que coloca cercas nas terras indígenas, nas terras quilombolas, que coloca seus tentáculos nos direitos dos trabalhadores. E um fundamentalismo punitivo que acredita que as balas e as grades, primordialmente direcionadas aos jovens negros e pobres deste país, são a solução para os problemas nacionais. Um balé macabro articulado pela batuta de Eduardo Cunha.
Acredita que há um movimento político para “anistiá-lo”?
Na votação, tivemos aplausos a Eduardo Cunha. Como se fosse um herói. Foi feito um acordo para salvar Eduardo Cunha caso ele se prestasse a articular o golpe contra Dilma Rousseff. Isso está claro. Esse que homenageou os torturadores foi às redes sociais para dizer que foi isso mesmo. Fora essa resolução da mesa diretora de diminuir o crime de Cunha. De transformar o processo em apenas “omissão de informações” e dizer que ele não teve direito de defesa. O golpe se explicita.
Você falou em articulações. Antes da votação, os dois lados recorreram ao que estivesse ao dispor para garantir votos, a ponto de oferecerem cargos e afins. Foi uma estratégia legítima? Ética?
Essa imagem do “governo à venda” foi construção da mídia. Houve uma fila de deputados no Palácio do Jaburu. Seguramente, não estavam lá para um sarau cultural ou para discutir poesia. Estavam lá para negociar cargos que ainda nem estão, e espero que nunca estejam, à disposição. Outra coisa é você estar no governo e ter que lidar com a saída de dois partidos, que deixaram cargos vagos. Ou seja, ter que recompor as bases do governo. É uma diferença muito grande. A salvação de Cunha foi negociada. Quem está vivo, verá.
Cunha, Bolsonaro, Feliciano… merecem um cuspe?
O deputado Jean Wyllys reagiu como reagem aqueles que estão sendo aviltados todos os dias. Ele expressou uma indignação diante desta democracia que está sendo corroída. Diante desses direitos que estão sendo solapados. O que é mais agressivo? Você ficar constantemente xingando, humilhando uma pessoa, ou um cuspe? Precisamos compreender o contexto. Querem anular o trabalho do primeiro parlamentar homossexual assumido e não-homofóbico, que representa o povo brasileiro nesta casa. Eles provocam em baixo tom, para que ninguém perceba. Agridem permanentemente. Eu já sofri isso. Em um debate sobre o estatuto da família, o Bolsonaro quis me impedir de sair da sala. Quer agressão maior que essa? Dizer que uma deputada não merece ser estuprada? Homenagear o Ustra, símbolo profundo da tortura?
Muitos lhe acusam, assim como acusam o Deputado Jean Wyllys, de impor determinadas ideias, doutrinar ideologias, principalmente aquelas relacionadas às “minorias”…
Quando defendemos os direitos da população LGBT e de todos os segmentos que foram historicamente oprimidos, estamos defendendo os direitos do conjunto da sociedade. A discriminação mata. E antes de matar, ela desumaniza. Antes dos negros sofrerem com os grilhões da escravidão, eles foram desumanizados. Você não provoca, não machuca, não humilha, não anula e não fere quem você acha que é igual a você. Ao desumanizar, você possibilita que eles se tornem vítimas da violência visível. Quando lutamos pelos direitos de todos e todas, inclusive dos segmentos minorizados – como os negros e mulheres, que não são minorias no país, mas que são minorizados – lutamos por toda a sociedade. A expressão de violência parte daqueles que sabem que é preciso manter a sociedade hierarquizada, que excluem, que não se conformam com qualquer rasgo de igualdade. Que não querem ver o outro como sujeito de afeto e amor. Faço, então, o raciocínio inverso: tentar impor uma sociedade dividida, de armários, de prisões, de manicômios, é tentar impor uma sociedade que nunca terá uma cultura de paz. Que nunca será para todos e todas.
O fato de ser petista te impede de tecer críticas ao partido? O PT não errou na condução do governo?
Estamos respondendo pelas reformas estruturantes que não fizemos. Deveríamos ter feito uma reforma política. Deveríamos ter feito uma revolução cultural. Ou seja, não incorporar as pessoas somente como consumidores, mas como cidadãs. Ainda temos expressões muito cruéis, como a homofobia, o sexismo, o machismo. Era necessário uma revolução para tirar o peso do fundamentalismo na construção da vida cotidiana. Não fizemos a democratização dos meios de comunicação. Não fizemos a reforma tributária. Mas, praticamente, acabamos com a fome, com a mortalidade infantil, abrimos o acesso à vida acadêmica e escolar. Lá trás, erramos ao não perceber que a oposição se manteve no palanque. Estamos vivenciando um terceiro turno.
Não houve, também, uma falha na gestão dos programas sociais?
Não se implementou, em primeiro momento, o programa que foi vencedor nas urnas. Estamos recuperando a aliança dos movimentos sociais e democráticos neste processo de resistência atual. Entenda: nem sempre votei com o governo, faço críticas, mas tenho absoluta convicção que qualquer transformação necessária ao Brasil só será possível no campo democrático. Rompe-se a democracia, rompe-se a possibilidade de mudança e de conquista de direitos. E digo, com toda segurança, que apesar dos problemas no Partido dos Trabalhadores e no governo, foram os mandatos de Lula e Dilma que mais transformaram positivamente este país. A única perspectiva de um real avanço social ainda pertence ao governo de Dilma Rousseff.
Vivemos uma ditadura velada?
Eu comecei minha vida política enfrentando a ditadura. A ditadura arranca a voz. A cultura, a arte, a ciência não crescem em um regime ditatorial. São cerceadas, censuradas. Nada existe sem liberdade. E o que estamos vivendo agora é uma construção de uma ditadura. Trocaram-se as fardas pelos paletós, bem apertados, as botas pelos sapatos de luxo, as baionetas pelos microfones e as canetas. Só construiremos uma democracia de alta intensidade, que esteja nas ruas, nos bares, nas casas, em todos os cantos, se tivermos um aumento expressivo da participação popular. Não é este parlamento branco, masculino e com ares fundamentalistas que vai construir esse panorama.
Devemos temer a possibilidade de um Bolsonaro presidente?
Eu diria que não dá mais para menosprezar o absurdo. Mas o ovo de serpente a gente não ignora, a gente enfrenta.
Saiba mais…
Com 41 anos de vida política, a cearense Erika Kokay desembarcou em Brasília na década de 1970, em plena ditadura. Em pouco tempo, aderiu ao movimento estudantil. Na UnB, onde cursava psicologia, passou a discusar em prol da liberdade de expressão. Acabou expulsa. Formou-se somente 10 anos depois, após a anistia. Nos anos 1990, ganhou voz no movimento dos bancários. Em 2002, encara o primeiro mandato como deputada distrital, para o qual seria reeleita. Atualmente, exerce o segundo mandato como deputada federal, depois de receber 92 mil votos nas últimas eleições.