RBA
Cida de Oliveira
São Paulo – Os quase 80 mil brasileiros mortos em decorrência da covid-19, a ampla maioria deles pobres e negros, não são vítimas apenas do novo coronavírus, mas também de um vírus que infecta a estrutura política. Ele está presente no organismo da ultradireita neofascista, explícita na figura do presidente Jair Bolsonaro. E ainda do “corpo” de governos que esboçaram aparente oposição ao governo federal – no início da pandemia –, mas que carregam um pensamento neoliberal, numa linhagem também de direita. Trata-se do vírus da necropolítica, que em tradução “livre” para esse caso pode ser entendida como política de extermínio dos indesejáveis.
Em ensaio publicado recentemente pelo Observatório do Risco do Centro de Estudos Sociais da Universidade de Coimbra (Osiris), a professora de Direito Constitucional Luana Paixão Dantas do Rosário, da Universidade Estadual de Santa Cruz (Uescv), em Ilhéus (BA), discute o projeto ultraliberal evidenciado pelos desdobramentos da pandemia no Brasil.
Na sua avaliação, a inépcia do governo Bolsonaro para lidar com a maior crise sanitária da história, a minimização do vírus, a negação da ciência, a estratégia discursiva de opor “a economia ou a vida”, a falta de medidas semelhantes às adotadas em outros países, não são por acaso. Afinal, o bolsonarismo é um espectro emocional, antirracional, anticiência, que aglutina a si a pauta ultraneoliberal do mercado, para o qual as vidas são descartáveis, o conservadorismo neopentecostal e a direita militar tradicional, presente nos primeiros escalões do governo, cujo símbolo é a ameaça de um golpe por meio das armas.
Dessa maneira, segundo Luana, a implementação de um Estado de exceção não assumido visa perseguir e exterminar adversários políticos e pessoas consideradas à “margem da normalidade”. Não é a toa que, em vez de combater a pandemia, a prioridade do presidente é interferir politicamente em órgãos e fazer alianças para frustrar seu impeachment e garantir sua impunidade e a dos filhos. “Bolsonaro tem acesso aos estudos, aos dados, às projeções, à experiência internacional. Ele sabe quantas pessoas podem morrer pela covid-19. A verdade é que para ele e o seu projeto, isso não importa”.
Ainda conforme a autora, esse projeto ultraneoliberal da nova extrema-direita encarnado por Bolsonaro e sustentado pelo capitalismo financeiro exige reformas, como a trabalhista, previdenciária, tributária e administrativa. Levadas a cabo a qualquer custo, visam a saquear o país. E o apoio de setores da sociedade, afirma, dá-se por motivos diversos, identidade com o conservadorismo de costumes, militarismo de caserna, sentimento de justiçamento em relação a violência e insegurança pública, ressentimentos mal direcionados e até mesmo desconhecimento em relação aos interesses ideológicos ocultos por trás do discurso moralista e populista de direita.
Descortina-se então a face oculta do mal, com a omissão, de caráter fascista, de políticas públicas de enfrentamento à pandemia e a indiferença diante dos milhares de mortos, deixando morrer aqueles que se considera descartáveis.
Para o psicanalista e professor da Universidade de São Paulo (USP) Christian Dunker, a necropolítica ostensiva e escrota, própria do presidente, ecoa nas medidas adotadas por governadores estaduais que o apoiam ou apoiaram. É o caso de Coronel Marcos Rocha (PSL-RO), de Rondônia, Antonio Denarium (RR, ex-PSL, ficou “sem partido” junto com Bolsonaro), de Roraima, Mauro Mendes (DEM-MT), Mauro Carlesse (DEM-TO), Ratinho Junior (PSD-PR) e Wilson Lima (PSC-AM), do Amazonas.
Com exceção de Roraima e Amazonas, os demais estados enfrentam no momento alta de mortes pela covid-19. “Nesses estados governados por políticos afinados ideologicamente com Bolsonaro a situação é mais avassaladora. É a somatória de opção política com o histórico déficit de serviços públicos de saúde. Com menos hospitais, menos leitos, menos profissionais de saúde”, disse Dunker.
Já apoiadores de ocasião, que pegaram carona na popularidade de Bolsonaro no período eleitoral, como João Doria (PSDB-SP) – que chegou a usar camisetas amarelas estampadas com o nome BolsoDoria –, Wilson Witzel (PSC), do Rio de Janeiro, e Eduardo Leite (PSDB-RS), se opuseram aparentemente à necropolítica de Bolsonaro no início da pandemia. Levantaram a bandeira do isolamento social e do fechamento do comércio e de atividades fora da lista dos serviços essenciais.
No entanto, de maio para cá o comércio passou a ser reaberto nesses estados. Apesar da curva ascendente de contágio pelo coronavírus e aumento no número de mortes. A medida, que pode parecer atendimento de demanda de empresários e da classe média, louca para voltar aos shoppings, academias e outros serviços em troca de apoio político, não é vista dessa maneira pelo psicanalista.
Christian Dunker observa que o Brasil enfrenta diferentes pandemias do novo coronavírus, que chegou primeiro em algumas regiões e depois em outras. Hoje há interiorização, com aumento de casos no Sul, Centro-Oeste e interior dos estados. Isso tensiona decisões no âmbito estadual. “Exemplo é o fechamento de atividades em algumas regiões de São Paulo, como de Campinas e Presidente Prudente, onde há demandas do agronegócio. Mas ainda assim com certo cuidado com a questão sanitária”, diz.
Ele ressalta que a aparente disputa entre a necropolítica e a biopolítica se deu inicialmente em um momento em que não havia as estratégias que existem hoje. “Era apenas a quarentena. Obedecer significava fazer frente a Bolsonaro. Hoje já sabemos que temos de reformular nossa relação com a lei sanitária, vamos precisar de uma quarentena com mais inteligência, com controle. O debate tem de ir para além do se abre ou se fecha.”
Segundo Dunker, na verdade Doria, Witzel, Eduardo Leite e outros praticam um outro tipo de política da morte por decisão do estado. E que vai além da pandemia de covid-19. “É o histórico desmonte de serviços públicos, principalmente de saúde, redução de investimentos, privatização e políticas que causam mais adoecimento e morte ao mesmo tempo que reduzem o acesso à saúde pública. A gente pode discordar de tudo isso, mas podemos compará-los a Bolsonaro.”
Pesquisador do Instituto Leônidas & Maria Deane (ILMD), vinculado à Fiocruz Amazônia, o epidemiologista Jesem Orellana entende que a vida tem de estar em primeiro lugar. Sem a preocupação com a vida os indicadores macroeconômicos não têm sentido. “De 6 a 12 de julho teve uma média de 112 mortes por dia na cidade de São Paulo. Fora outras mortes suspeitas que não entraram na conta. Será que essas vidas não importam? Esse é o valor que a prefeitura considera admissível e aceitável para a retomada da economia? Essa é uma questão que temos de refletir bastante: o valor que os gestores têm dado à vida das pessoas”, disse.
“Essa cultura que tem se espalhado e se impregnado nas prefeituras e nos governos estaduais é emanada, querendo ou não, do governo federal. Da necropolítica que faz abrir mão da vida das pessoas, da saúde, do bem-estar, em nome de indicadores econômicos. De combate ao endividamento público. Será que esses indicadores valem mais do que essas 112 mortes diárias?”, questionou.
Cultura à qual se refere, a reabertura de comércios e serviços quando a epidemia ainda não está controlada tem tido desfechos trágicos. Talvez o exemplo mais emblemático seja o da capital de Rondônia, Porto Velho. Em 20 de abril havia poucos casos de covid-19 e o número de mortes era baixo. “Com uma narrativa alinhada ao do presidente da República, o governador passou a pregar a reabertura da economia no estado. Resultado: até a semana passada, havia uma grave crise sanitária. Pessoas morrendo em vários lugares da cidade, dentro de casa, nos seus domicílios, sem ter acesso a leitos de UTI”, destaca Jesem.
Para ele, a situação saiu completamente do controle devido a uma decisão inadequada, extemporânea, que cobrou vidas. E consolidou aquilo que vem sendo chamado de “necropolítica emanada pelo governo federal”.
Ele lembrou também o caso do estado de Santa Catarina, que chegou a ter shopping aberto na cidade de Blumenau em abril, com música ao vivo para receber os clientes. “De uma hora para outra são infectadas centenas e centenas de pessoas e se perde o controle da situação. Isso vai continuar acontecendo em todos os lugares em que as pessoas estiverem minimizando a pandemia. E se importando mais com indicadores econômicos e menos com a vida das pessoas”.
O viés de classe da pandemia no Brasil, segundo o pesquisador da Fiocruz, expõe o lado mais perverso da escolha dos governos. Nesse momento mais crítico, são as pessoas mais pobres que sofrem e morrem pela covid-19. Sem acesso à atenção básica, centros diagnósticos, internação, leitos de enfermaria e de UTI. “São elas que estão pagando a conta com a vida.”