RBA
Cláudia Motta
São Paulo – Economia justa e o papel do setor financeiro em uma sociedade pós-covid. Esse foi o tema do webinário promovido pela UNI Finanças com o economista Joseph Stiglitz, prêmio Nobel de Economia (2001). Stiglitz falou sobre os desafios apresentados pela pandemia do novo coronavírus, especialmente para os trabalhadores do setor financeiro. Como, por exemplo, impulsionar a transição para uma economia mais sustentável, que invista nas pessoas, nos serviços públicos e na comunidade.
Joseph Stiglitz atua na Universidade de Columbia e é economista-chefe do Instituto Roosevelt, cargo que exerceu também no Banco Mundial entre 1996 e 1999. Conhecido por seu trabalho sobre distribuição de renda, risco, governança corporativa, políticas públicas, macroeconomia e globalização, é autor de muitos livros. Sua obra mais recente é People, Power and Profits: Progressive Capitalism for an Age of Discontent (Povo, Poder e Lucros: Capitalismo Progressista para uma Era de Insatisfação, em tradução livre)
Para Joseph Stiglitz, não se pode ter uma economia bem sucedida sem um setor financeiro que funcione bem. “E com trabalhadores críticos, fazendo o que têm de fazer, a fim de criar o setor financeiro que precisamos.”
O economista destacou que as falhas do setor têm sido relacionadas às falhas da economia. “A exemplo do que ocorreu em 2008, com excesso de risco, de crédito predatório. Erros que contribuíram para o centro da crise financeira que teve um efeito devastador na economia global.”
O Nobel de Economia alertou para o fato de que esse tipo de comportamento não foi algo global. “Nos EUA, por exemplo, houve uma série de instituições financeiras, união creditícias, cooperativas em que as práticas abusivas não ocorreram. Eles não apenas evitaram essas práticas negativas como agiram corretamente desempenhando seu papel na locação de capital, oferecendo crédito a pequenas e médias empresas.”
No Brasil isso ocorreu com os bancos públicos e as políticas anticíclicas adotadas pelos governos Luiz Inácio Lula da Silva e Dilma Rousseff.
A crise atual não é causada pelo setor financeiro, mas ele se envolverá, alerta o economista. “Qualquer recessão econômica se torna uma crise financeira. E os dados que temos já mostram que essa é uma das maiores recessões em 80 anos ou, para alguns, em um século.”
Stiglitz bate pesado no governo de Donald Trump. “Ele diz que (a recessão) vai desaparecer milagrosamente, mas isso é uma das suas muitas fantasias, como a fantasia de que ele é um bom empresário”, diz. “Isso não vai acontecer. Não vamos ter ‘recuperação em V‘ e a questão é a duração e a profundidade dessa crise econômica. Quanto mais longa e profunda, tanto mais empresas serão incapazes de pagar suas dívidas. Mais domicílios não poderão pagar. E quando você tem empresas e domicílios que não pagam, você tem uma crise financeira.”
O professor lembrou que os Estados Unidos têm 3% da população mundial, porém 25% dos casos de covid-19. “No mundo em geral, os países liderados por demagogos, pessoas que não acreditam em ciência, que criaram divisão em suas sociedades e adotaram práticas de exploração não se deram bem”, disse, mencionando Brasil e Índia, além dos EUA. “Os países que criaram um sistema de confiança entre os cidadãos e os governos, confiança na ciência, instituições fortes, estes estão bem, a exemplo de Nova Zelândia, Coreia do Sul, Alemanha, com desempenho muito bom.”
Em seu seminário virtual, Joseph Stiglitz relatou que metade dos trabalhadores americanos vivem do pagamento mês a mês. “Ou seja, a população de menor renda não tem escolha, tem de trabalhar mesmo doente. Os EUA são um dos poucos países que não têm a auxílio doença obrigatório. Você não é afastado recebendo pagamento. Chegou a ser aprovada uma lei que previa dispensa, apenas para a covid-19, de 10 dias. Mas as empresas mais ricas usaram lobby para uma exceção à regra e conseguiram. Isso graças aos republicanos, que não se importam com a vida dos americanos”, disse.
“O resultado foi que 48% dos americanos que trabalham para empregadores com mais de 500 funcionários estavam liberados dessa dispensa médica. São empresas que poderiam muito bem pagar uma dispensa médica, mas seu imediatismo faz com que coloquem os lucros à frente da vida dos trabalhadores e das suas perspectivas de longo prazo. Uma das razões para que a doença se disseminasse tão rapidamente”, completou.
O economista voltou a reforçar: o governo dos Estados Unidos não se importa nem com os trabalhadores, nem com o povo. “E assim eles se recusaram a impor regulação a fim de assegurar que os trabalhadores tivessem direito a equipamentos de proteção individual, a máscara necessária, luvas. Os trabalhadores na linha de frente tinham de ir ao trabalho sem proteção. Mesmo prestando serviços essenciais.”
Stiglitz destacou a importância da atuação dos sindicatos, notadamente nesse período da pandemia, observando que em áreas dos EUA onde havia sindicatos fortes, foi diferente. “Os sindicatos defenderam seus trabalhadores. O resultado é que, onde havia sindicatos, havia mais máscaras, mais equipamentos de proteção individual. E a doença não se disseminou tão rapidamente. Os sindicatos foram cruciais na proteção dos trabalhadores e asseguraram que o contágio pela covid-19 não se acelerasse tão rapidamente. Essas experiências bastam para mostrar a importância, o papel crítico que os sindicatos desempenharam na gestão da crise sanitária.”
Ele disse o mesmo em relação ao desemprego, que cresceu muito nos EUA. “Diante disso, muitos empregadores se aproveitam da posição de barganha enfraquecida dos trabalhadores. Os salários estão caindo. Trabalhadores estão sofrendo, tendo de aceitar cortes nos ganhos. A única proteção contra esse tipo de exploração são os sindicatos.”
O economista falou sobre o comportamento de multinacionais que aproveitam e rebaixam ainda mais os salários. “Esse é o momento em que os sindicatos são mais necessários do que nunca. Tornar os trabalhadores conscientes do que está acontecendo deveria fortalecer a filiação aos sindicatos. São exemplos importantes do que acontece na ausência da proteção sindical.”
Para o prêmio Nobel de Economia, gastos de governo bem projetados são essenciais, especialmente agora, durante a pandemia. “Os EUA, por exemplo, usaram uma bazuca, como se fosse uma recessão de curto prazo. Foram três trilhões de dólares de gastos fiscais e outros três trilhões de dólares para extensão da reserva federal. Os programas não foram bem projetados e não conseguiram frear a recessão. Por isso o aumento do desemprego nos EUA foi maior que nos países europeus”, explica. “Não houve garantia da continuação da assistência. Isso criou altos níveis de ansiedade, de precauções que levaram à fraqueza macroeconômica que estamos vendo. Essa assistência precisa continuar enquanto houver pandemia.”
Ele comparou os Estados Unidos com a Europa, que respondeu “de maneira inédita” com os títulos europeus, os eurobonds. “Foi um marco. Foram € 750 bilhões em empréstimos. Desafio para os bancos, já que no rescaldo da pandemia, muitos não conseguirão pagar. O setor financeiro terá de lidar com isso. Será necessário apoio para empresas e famílias”, avalia. “E elas poderão pagar suas dívidas quando a economia reaquecer. O setor financeiro precisa fornecer o dinheiro que irá viabilizar o pagamento dessas dívidas. Muitas, no entanto, não poderão saldar, e as autoridades fiscais deverão dar condições para esses empréstimos como meios de mitigar os riscos da pandemia.”
Joseph Stiglitz avalia que a covid-19 deve levar à reestruturação da economia. E para um modelo que terá de ser universal. “Reconstruir melhor, de maneira mais verde, com base em conhecimento”, explica. “Vimos um grande crescimento da desigualdade em vários setores. O vírus impacta mais quem tem piores condições de vida. Exacerba as disparidades de renda. Nos EUA há grande desigualdade no acesso à saúde, já que não se vê isso como um direito humano. A covid-19 expôs as fraquezas da nossa sociedade, da nossa economia, o excesso de desigualdade. E a falta de resiliência do setor privado que não conseguiu produzir coisas simples como máscaras, luvas, testes”, critica.
E novamente destaca o papel do setor financeiro, essencial para essa reestruturação para uma economia pós-covid. “Que, espero, seja diferente da economia que tínhamos antes da pandemia. Há um consenso no mundo em reconstruir melhor, uma nova economia. Isso significa que o setor financeiro não pode focar apenas na antiga maneira de fazer negócios, com manipulação de mercado, com foco em fusões e aquisições, regras fraudulentas de comercialização. Precisamos de dinheiro para novos setores”, alerta. “Os cidadãos têm o direito de exigir uma economia que transpareça a visão deles. O dinheiro tem de proteger os mais vulneráveis, ajudar a reaquecer a economia e sobretudo reconstruir melhor.”
A recuperação, deixa claro o professor, será difícil. “Mas a economia verde e com base em conhecimento pode ser altamente eficaz. São projetos que requerem mão de obra, aumentando a criação de empregos, e isso ajudaria a lidar com o problema da desigualdade. Ao contrário do que temos hoje, com a redução dos salários.”
Com a pandemia, avalia o economista, vimos que muitos aspectos do nosso sistema não funcionam. “Estamos sendo confrontados com essa nova realidade. Esse processo de mudança de mentalidade parece estar em andamento, já. Claro que vai levar muito tempo. Algumas pessoas querem continuar se beneficiando do antigo regime. Mas os números mostram que precisamos de mudança”, diz. “No livro que lancei, falo da opinião dos jovens que estão muito mais alinhados com uma agenda progressista, de um capitalismo ético. Há necessidade de mudanças de regras que regem nossa economia. Ideias que faziam sentido há 50 anos não fazem mais. Aprendemos que a maximização dos lucros dos acionistas é errada. O capitalismo dos acionistas não maximiza o bem-estar da sociedade. Precisamos de regulamentações que alterem regras do setor financeiro.”
Ele fala em leis que protejam contra novos monopólios e abusos. “Sou otimista, acredito que seremos capazes de adotar regulações e leis de concorrência que vão possibilizar uma economia mais competitiva, mais dinâmica, que vai crescer mais rápido, mais justa, e com mais igualdade.”
A UNI Finanças, que organizou o webinário, representa 3 milhões de trabalhadores nos setores bancário e de seguros por meio de 237 sindicatos em todo o mundo. “Trabalhadores do setor financeiro estão na linha de frente na prestação de serviços essenciais a suas comunidades”, disse a presidenta mundial da UNI Finanças, Rita Berlofa.
“A crise de 2008 mostrou ser peremptório que qualquer investimento público para salvar bancos tem de ser acompanhado de contrapartida que garanta empregos. Neste momento, algumas instituições financeiras estão utilizando a covid-19 para se reestruturarem ainda mais, com graves consequências para clientes e trabalhadores”, afirmou Rita, que é diretora executiva do Sindicato dos Bancários de São Paulo. “Aqui no Brasil temos o péssimo exemplo do Santander que já demitiu centenas de trabalhadores durante esta pandemia. E infelizmente comportamento que vem sendo acompanhado pelo Itaú.”
A indústria financeira tem de ter responsabilidade social para com a comunidade em que atua, garantindo empregos decentes com condições salariais justas, defende a dirigente sindical. “E num ambiente que não coloque em risco nem a vida, nem a saúde do trabalhador.” Segundo Rita Berlofa, a UNI Finanças reconhece que, ao saírem da crise sanitária, as economias precisarão de um novo modelo de financiamento, voltado para o desenvolvimento sustentável e para a preservação do meio ambiente. “Um setor financeiro orientado para as necessidades da economia real, em que haja investimento nas pessoas, nos serviços públicos, na comunidade. Queremos incluir nossos integrantes e sindicatos na reconstrução da economia mundial para uma sociedade no pós-covid, com reforço nas negociações coletivas.”