por Hylda Cavalcanti e Sarah Fernandes, da RBA
São Paulo – Descumprindo norma de funcionamento da Comissão de Anistia que vigora desde sua criação, em 2001, o presidente Michel Temer exonerou seis membros do órgão e nomeou outros 20. Entre eles, o professor de Direito Constitucional da USP Manoel Gonçalves Ferreira Filho, conhecido teórico e apoiador da ditadura civil-militar instaurada no Brasil em 1964, denominada por ele de "Revolução de 1964".
“Caso a nova composição da Comissão de Anistia reflita o pensamento de Manoel Gonçalves Ferreira Filho e tenha entre seus membros simpatizantes ou colaboradores com a ditadura trata-se de uma desfuncionalidade e um sério risco à posição oficial do órgão sobre a devida responsabilização penal dos agentes públicos que praticaram crimes de lesa-humanidade na ditadura”, avalia Movimento por Verdade Justiça e Reparação em nota.
Segundo apuração do jornal O Globo, outro nomeado por Temer para a Comissão também pode ter colaborado com a ditadura: o ex-sargento do Exército e professor de Direito em Natal Paulo Lopo Saraiva. Em depoimentos de militantes de direitos humanos e também no relatório da Comissão da Verdade da Universidade Federal do Rio Grande do Norte, ele é descrito como um militar que prestou serviços à ditadura.
"Foi sargento do Exército e (...) desempenhou funções na 2ª seção, antes e depois da Revolução de 31 de março de 64, onde participou de ações contra a subversão, tendo atuado como escrivão de inquérito instaurados para apurar corrupção em prefeituras do interior do estado", diz o relato do Serviço Nacional de Informação.
Em outro informe, de 1982, Lopo aparece como quem já criticou o regime militar, mas que também fez elogios públicos ao governo de João Figueiredo, último general-presidente da ditadura. "Acredito na abertura do presidente João Figueiredo", disse em uma reunião política ocorrida em Natal, na qual também afirmou que os direitos humanos eram respeitados no país.
Em outro trecho, no entanto, ele critica o regime. "Um verdadeiro homem de fibra tem que ser preso, tem que ir para o exílio" e que enquanto deixassem ele entrar na universidade para dar aula, ele "continuará a mostrar aos alunos a realidade do Brasil".
O integrante da Comissão da Verdade Juan Almeida afirma que o relatório do grupo não chegou a dados conclusivos sobre Paulo Lopo, mas que, a partir de depoimentos de ex-perseguidos políticos e documentos do Arquivo Nacional em Brasília, é possível inferir que ele não estava no grupo dos que combatiam o regime. Lopo negou ao jornal O Globo que tenha sido um colaborador dos militares.
Na opinião de integrantes da comissão, Temer está provocando na entidade uma "descontinuidade de sua composição histórica". Para o professor e analista legislativo Roberto Antunes, da Universidade de Brasília (UnB), que colaborou com vários estudos para a comissão, a diferença de antes para agora se dá porque desligamentos de conselheiros sempre foram observados por iniciativas pessoais e não, motivos particulares dos ocupantes do governo.
Por isso, ele é da opinião que a mudança precisa ser melhor observada pelos movimentos sociais, entidades da sociedade civil, universidades e entidades de pesquisa que colaboram com os trabalhos desde o início, para evitar que rumos da comissão não se percam.
O pensamento de Antunes vai ao encontro do que pensam os representantes do Movimento por Verdade, Memória, Justiça e Reparação. De acordo com nota pública da entidade, a comissão de anistia atuou, nos últimos 14 anos, com um histórico relevante na área dos direitos humanos, “mantendo, ao longo do tempo, a integralidade dos seus membros e as composições integrais advindas dos governos anteriores”.
“Eu repito uma das frases mais importantes desta nota de repúdio que é, para todos nós, o que mais surpreende e deve servir de alerta: o de que a Comissão da Anistia era vista como um órgão de Estado e não de governo. E para continuar tendo a efetividade que sempre teve precisa continuar sendo este órgão de Estado”, afirmou Antunes.
O governo Temer interveio de forma inédita na Comissão de Anistia, órgão responsável por políticas de reparação e memória para as vítimas da ditadura civil-militar. Desde sua criação, ainda no governo de Fernando Henrique Cardoso, a comissão era composta por conselheiros e conselheiras com histórico de atuação na área dos direitos humanos.
Os eventuais desligamentos ocorreriam por iniciativas pessoais dos membros e as novas nomeações dependiam de um longo processo de escuta de movimentos dos familiares de mortos e desaparecidos, de ex-presos políticos e exilados e de organizações e coletivos que militam na área.
Esse modelo assegurava pluralidade à comissão, que tinha caráter de ser um órgão de Estado e não de governo, como avalia o Movimento por Verdade Justiça e Reparação em nota. “Pela primeira vez na história da Comissão de Anistia foram nomeados novos membros sem nenhuma consulta à sociedade civil e pela primeira vez foram exonerados coletivamente membros que não solicitaram desligamento”, diz o texto.
Foram desligados – por meio de uma portaria do ministro da Justiça, Alexandre de Moraes – Ana Guedes, do Grupo Tortura Nunca Mais da Bahia e ex-presidente do Comitê Brasileiro pela Anistia na Bahia; José Carlos Moreira da Silva Filho, vice-presidente e professor do Programa de Pós-Graduação em Ciências Criminais da PUC-RS; Virginius Lianza da Franca, ex-coordenador geral do Comitê Nacional para Refugiados; Manoel Moraes, membro da Comissão Estadual da Verdade de Pernambuco e ex-membro do GAJOP; Carol Melo, professora do núcleo de Direitos Humanos da PUC-Rio; Marcia Elayne Moraes, ex-membro do comitê estadual contra a tortura do RS.
Por meio de outra portaria, 20 conselheiros foram nomeados: Amanda Flávio de Oliveira, Arlindo Fernandes de Oliveira, Carlos Bastide Horbach, Carolina Cardoso Guimarães Lisboa, Eunice Aparecida de Jesus Prudente, Fabiano Menke e Fernando Dias Menezes de Almeida; Floriano Peixoto de Azevedo Marques Neto, George Rodrigo Bandeira Galindo, Gilda Portugal Gouveia, José Rogério Cruz e Tucci, Kaline Ferreira Davi, Luiz Alberto Gurjão Sampaio de Cavalcante Rocha, Nina Beatriz Stocco Ranieri e Otavio Brito Lopes, além de Paulo Lopo Saraiva.
Assumiu a presidência da Comissão o advogado Almino Affonso, que foi ministro do Trabalho e Previdência do governo do presidente João Goulart e que teve mandato de deputado federal cassado em 1964. Almino Affonso também foi vice-governador de São Paulo, na chapa de Orestes Quércia, e assessor e secretário de Relações Institucionais do governo paulista na gestão de José Serra. Mais recentemente, foi Conselheiro da República do governo do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva.
Como vice-presidente, foi nomeado o advogado e ministro aposentado do Supremo Tribunal Federal (STF) Francisco Rezek – ex-ministro das Relações Exteriores do presidente Fernando Collor. Também foi nomeada a secretária de Contencioso da Advocacia-Geral da União (AGU) Grace Maria Fernandes Mendonça, para segunda vice-presidência da Comissão de Anistia.
Outros dez permaneceriam no cargo, porém outros cinco pediram para deixar o colegiado, como forma de protesto contra a troca intempestiva dos cargos de presidente e vice. São eles: Aline Sueli de Salles Santos, Caroline Proner, Narciso Patriota, Nilmário Miranda e Roberta Camineiro Baggio, segundo informação de antigos integrantes.
Não foram divulgados os critérios de seleção. “Ao dispensar esse grupo de conselheiros, o governo Temer coloca a perder quase uma década de memória e de expertise na interpretação e aplicação da legislação de anistia no Brasil”, diz a nota do movimento.
Os membros da Comissão de Anistia exonerados por Temer, em conjunto com os que permaneceram, foram os responsáveis por reduzir valores milionários das indenizações concedidas no início do governo de Fernando Henrique Cardoso, ajustando os valores aos de mercado. Além disso, os conselheiros aceleraram o julgamento dos pedidos de reparação e instituíram o pedido de desculpas às vítimas e as famílias.
Os conselheiros foram reconhecidos internacionalmente por implementarem projetos inovadores pela garantia da memória, pelo início da construção do Memorial da Anistia e pela realização de eventos e intercâmbios acadêmicos e culturais, além de inúmeras publicações no Brasil e na América Latina.
“O governo Temer com esta atitude arbitrária comete um erro histórico que afeta a continuidade da agenda pendente do processo de transição democrática, e com isso aprofunda as suas características de um governo ilegítimo, sem fundamento na soberania popular”, diz o movimento, que classifica a ação como uma “tentativa de desmonte” de políticas democráticas.
Conforme informações do Ministério da Justiça, que não quis dar maiores declarações sobre o tema nem sobre a polêmica envolvendo Lopo Saraiva, o trabalho da comissão tem interesse público relevante e é desenvolvido pelos conselheiros sem remuneração. O ministério também destacou que a comissão possui ligação direta com o gabinete do ministro. E tem, atualmente, mais de 75 mil pedidos de anistia protocolados.
A expectativa é de que na próxima semana sejam observados atos de repúdio em universidades e espaços públicos por parte de entidades da sociedade civil e órgãos de defesa de direitos humanos contra as mudanças na comissão da anistia. Paulo Lopo Saraiva ainda não se manifestou a respeito das reclamações sobre a indicação do seu nome nem das acusações de que contribuiu para os órgãos de informação durante o período da ditadura civil-militar (1964-1985).