Por André Barrocal
CartaCapital – O escândalo internacional do cartel do câmbio ressuscitou uma velha disputa brasileira. Desde julho na mira das autoridades antitruste locais, 15 instituições financeiras contam até aqui com um aliado no governo. Em debates a portas fechadas e com recados públicos sutis, o Banco Central às vezes parece atuar como advogado dos investigados.
Contesta o direito do Conselho Administrativo de Defesa Econômica de investigar a banca e afirma ser “praticamente impossível” manipular o dólar oficial. E tentou arrancar do Palácio do Planalto uma lei capaz de liquidar as apurações em curso no Cade.
Há mais de dois anos estuda-se no governo a ideia de autorizar o BC a selar acordos de leniência com instituições financeiras flagradas em irregularidades.
Nesses acordos, uma empresa confessa seus crimes, entrega os comparsas e em troca consegue benefícios penais e anistia de multas. O Cade pode aceitar delações premiadas graças a uma lei de 2011 e, por causa dela, nasceu a apuração do cartel do câmbio.
Após essa investigação começar, as conversas sobre acordos de leniência do Banco Central foram apressadas na área econômica. No fim de setembro, uma proposta chegou ao Planalto, com o pedido para Dilma Rousseff decretar uma medida provisória.
Pelo texto, só o BC poderia abrir e comandar processos administrativos contra agentes do sistema financeiro, incluídos aí os casos de formação de cartel, como esse do câmbio. Se a MP vingasse agora e nesses termos, detonaria um imbróglio jurídico, com os bancos gratos por ganhar de Brasília uma arma para melar as apurações do Cade e negociar com quem, digamos, os compreende.
Em reuniões na Casa Civil para discutir a MP, porta-vozes da autoridade monetária rejeitaram todas as sugestões de incluir no texto um dispositivo que liberasse o Cade para vigiar os bancos em parceria com o BC quando estivesse em jogo a livre concorrência.
O órgão antitruste não foi menos inflexível. Consta que seu presidente, Vinicius Marques de Carvalho, ameaçou pedir demissão, se levasse a pior. Diante do impasse, o Planalto resolveu deixar a medida provisória de lado, ao menos por enquanto. Uma derrota para Alexandre Tombini e companhia.
Disputa de competências à parte, o xerife da concorrência e a autoridade monetária não estão na mesma sintonia nem mesmo sobre a existência de um cartel mundial de câmbio com impactos no Brasil, outro exemplo de como a turma na mira do Cade está coberta de motivos para torcer pelo Banco Central.
O BC esforça-se por convencer a plateia, no governo e fora, de que é “praticamente impossível” manipular a taxa de câmbio oficial brasileira, a Ptax, calculada todos os dias pela instituição com base nas transações diárias com dólar comunicadas pelo “mercado”.
Seu diretor de Política Monetária, Aldo Mendes, defendeu essa posição no Senado em outubro. Segundo o Banco Central, há no máximo “indícios de tentativa de atuação em conluio” na fixação de spreads, porcentual de lucro obtido pelos negociantes com a diferença entre o valor de compra e o de venda de dólar.
Posição curiosa, mais realista do que o rei. Das 15 instituições na mira do Cade por suspeita de cartel, cinco fecharam, em maio, um acordo com autoridades americanas para se livrar de processos criminais instaurados, entre outras razões, pela irregularidade investigada aqui, manipulação do câmbio.
Barclays, Citigroup, JP Morgan, Royal Bank of Scotland e UBS confessaram a culpa e toparam pagar multas somadas de mais de 5 bilhões de dólares.
A apuração no Brasil surgiu, inclusive, de um acordo de leniência do Cade com uma das instituições multadas nos EUA. Para merecer os benefícios da delação, o suíço UBS teve de admitir sua culpa.
Entre os demais investigados, estima-se que quatro estão em fase de negociação de um Termo de Compromisso de Cessação, uma leniência menos atraente. O TCC garante redução de multas, não anistia e não os protege de ações penais.
Se um dos termos for assinado, será mais fácil provar o cartel. E os bancos que preparem o bolso. As multas no Cade e as ações de indenização prometidas pelos exportadores devem ultrapassar a casa do bilhão de reais.
A briga entre o Cade e o BC pela vigilância do sistema financeiro vem de longe. Historicamente, o Banco Central considera o setor como de sua alçada. Se há banco envolvido com fusão, aquisição e conduta contrária à livre concorrência, quer a primazia total para investigar. O órgão antitruste rebelou-se contra isso no governo Fernando Henrique Cardoso e não se aquietou mais. Procurado, o BC não se pronunciou.
O pontapé do conflito foi a compra do antigo Banco de Crédito Nacional pelo Bradesco, em dezembro de 1997, aquisição aprovada pelo BC, que não viu riscos para o funcionamento do sistema financeiro, embora não tenha sido examinada pelo Cade em seus aspectos concorrenciais.
Em 2001, o então advogado-geral da União, Gilmar Mendes, assinou um parecer ao gosto da equipe econômica comandada à época por Pedro Malan. Na briga com o Cade, o BC tinha razão, segundo Mendes. Mesmo ratificado por FHC, o parecer não acalmou o órgão antitruste.
Dias após o parecer, chegou à análise do Cade uma proposta para desfazer a joint ventureBCN Alliance, na qual o Bradesco entrara ao adquirir o Banco de Crédito Nacional. O Cade aproveitou a chance e aplicou uma multa de 127 mil reais no Bradesco por este não tê-lo acionado quando da aquisição do concorrente.
A multa desencadeou uma batalha judicial sem fim, cujo pano de fundo é a definição sobre qual órgão federal tem a competência para examinar práticas anticoncorrenciais no sistema financeiro. O caso está no Supremo Tribunal Federal, sob a relatoria do ministro José Dias Toffoli.