El País
Carla Jiménez
Um protesto a favor da democracia convocado por torcidas organizadas de futebol transformou a avenida Paulista num cenário de descalabro, na tarde deste domingo. A Polícia Militar usou bombas de gás lacrimogêneo para dispersar o grupo, que recuou ao longo da avenida. Eles chegaram a improvisar algumas poucas barricadas nas ruas e atiraram paus e pedras em resposta. Ao que tudo indica, a confusão começou quando um grupo de simpatizantes do presidente Jair Bolsonaro portando bandeiras de grupos neonazistas europeus foi provocar os manifestantes antifascistas. No local aconteciam dois atos simultaneamente, sendo um deles de apoiadores radicais do Governo. Para separar os grupos, a PM fez, inicialmente, um cordão de isolamento entre os dois lados, cada um em uma pista. Apesar do cuidado, houve registro de agressões a manifestantes de outro grupo. Um homem chegou a ser hospitalizado depois de ter sido espancado por carecas nazistas que ainda roubaram seu celular assim que ele desceu do ônibus na Paulista. “Estavam atacando todos que chegavam de preto na avenida”, diz uma familiar da vítima, que prefere não se identificar. A PM recuperou o celular do homem atacado, que conseguiu fazer um boletim de ocorrência das agressões.
A manifestação pró-democracia, que contou com centenas de pessoas, foi convocada pelas redes sociais e Whatsapp por grupos de torcedores do Corinthians, Santos e Palmeiras ligados ao movimento antifascista. Apesar do momento de pandemia do coronavírus, estas agremiações entenderam que era necessário fazer um contraponto aos atos a favor da intervenção militar. Aos gritos de “Democracia! Democracia!”, a marcha caminhou até a altura do Museu de Artes de São Paulo (MASP).
Imagens das televisões mostram simpatizantes do presidente provocando o tumulto, que começou por volta de 13h45. Paulo Henrique, um dos participantes do ato, afirmou que três pessoas fardadas ligadas ao grupo pró-Bolsonaro provocaram os manifestantes, “e aí veio toda a Tropa de Choque em cima”, versão corroborada pelo secretário-executivo da Polícia Militar de São Paulo, coronel Álvaro Batista Camilo, em entrevista à rede CNN. “Do nada, a tropa da PM começou a atacar a gente”, comentou um rapaz de preto que cobria os olhos vermelhos, afetados pela fumaça das bombas de gás lacrimogêneo. Paulo Henrique explicou que os três fardados caminharam na mesma pista em que estava o ato antifascista, algo que a polícia havia evitado desde o início. No encontro, alguns integrantes agrediram os fardados, o que teria acendido a fagulha que disparou a confusão e colocou os antifascistas no alvo da PM.
A partir dali, começou uma ação dirigida para dispersar o movimento antifascista da avenida, enquanto os radicais pró Bolsonaro ficaram de lado. Os policiais fizeram uma parede humana nas duas pistas da avenida, protegidos por escudo, mais ou menos na altura do MASP. A partir dali, avançavam pela Paulista disparando seguidamente bombas de gás lacrimogêneo, afastando os manifestantes que corriam para o sentido da Consolação, oposto à barreira policial. Os manifestantes, porém, em sua grande maioria homens, procuraram resistir ao ataque da polícia, reclamando que estavam sendo hostilizados, o que não aconteceu com o grupo pró-nazismo.
Imagens feitas por manifestantes mostram um homem com farda militar segurando uma bandeira do partido ucraniano Pravyy Sektor, ligado à extrema-direita e a grupos neonazistas, provocando quem participava do ato à favor da democracia. Na semana passada uma bandeira desta mesma agremiação radical foi vista em um carro de som durante ato de apoio ao presidente. Na Internet também circulam vídeos de uma simpatizante bolsonarista com um taco de baseball na mão sendo escoltada para fora da Paulista por policiais.
Na região do Conjunto Nacional, os manifestantes procuraram se proteger com grades de proteção que ficam junto a um shopping de compras daquele quarteirão. Atiraram pedras na polícia, e resistiam aos gritos de “Democracia”. Uma caçamba foi virada e foi colocado em entulho para marcar distância da polícia. Fotógrafos se posicionaram atrás dessa caçamba para fazer fotos do bloco da PM pouco antes das 16 horas. Desta forma, um grupo de ativistas se atreveu a fazer uma pequena barreira de costas para os policiais com escudos e de frente para os fotógrafos, com os braços erguidos gritando “De-mo-cra-cia”.
Em tempos de multiplicação de símbolos nazistas e arroubos autoritários no Brasil, incluindo uma pequena manifestação com estética supremacista à frente do Supremo neste sábado, o grito de resistência dos manifestantes que se colocaram em risco ali fazia sentido. Foi um momento de calma, respeitado pela PM, mas que durou pouco. Um manifestante – que não estava nessa barreira de ativistas — jogou pedras contra a polícia, e os ataques de bomba foram reiniciados. A PM avançou até o final da Paulista, esquina com a Consolação
O governador João Doria (PSDB) afirmou no Twitter que a tropa agiu “para manter a integridade física dos manifestantes, na Avenida Paulista. Dos dois lados”. Em entrevista à TV Globo, o coronel Camilo, da PM, afirmou que o “uso de munição não-letal foi feito para evitar que os grupos antagônicos entrassem em confronto”. Indagado sobre a suposta parcialidade da tropa, tendo em vista que muitos manifestantes bolsonaristas são ligados à polícia, Camilo afirmou que a PM “não é contra nem a favor”, e que está lá “para proteger o cidadão de bem”. Ele não confirmou a prisão de manifestantes, nem falou sobre eventuais feridos. Até as 16h ainda haviam focos de conflito na avenida.
A confusão no ato pela democracia pode servir de munição para grupos pró-ditadura, que vem pedindo intervenção militar para “garantir a ordem” e impedir que o Brasil se torne uma “ditadura comunista sob o jugo da China”, de acordo com slogans vistos nos atos a favor de Bolsonaro recentemente. O presidente, que usou um helicóptero neste domingo para sobrevoar um protesto de apoio ao seu Governo em Brasília e depois foi a cavalo saudar os presentes, não se manifestou ainda sobre o ocorrido na avenida Paulista.
As poucas centenas de manifestantes da capital, porém, defendiam Bolsonaro ao mesmo tempo em que pregavam o fechamento do Congresso e do Supremo Tribunal Federal. O presidente usou sua conta no Twitter para compartilhar uma mensagem do presidente dos Estados Unidos, Donald Trump, que afirmou que iria dar tratamento de organizações terroristas aos grupos antifascistas. Em mais de uma ocasião esta semana Bolsonaro criticou ações do STF contra aliados: “Acabou, porra!”, afirmou após ação da Polícia Federal que mirou aliados seus em um inquérito contra disseminadores de fake news.
No Rio de Janeiro, um ato antifascista e antirracista convocado pelas torcidas organizadas de clubes fluminenses e pelo movimento negro também terminou com repressão policial em frente ao Palácio da Guanabara. Sob o argumento “Vidas negras importam”, ativistas foram às ruas para protestar pelo assassinato de adolescentes, como João Pedro Matos Pinto, de São Gonçalo, há duas semanas.
A PM, então, reagiu com bombas para dispersar o ato, alegando que haveria tumulto, e bloqueio de trânsito, segundo informações de O Globo.
Os atos do final de semana vieram no mesmo dia em que o ministro do Supremo, Celso de Mello, chamou a atenção de seus pares para “lideranças autocráticas que desprezam a liberdade e odeiam a democracia”, disse ele em mensagem. Mello comparou o Brasil atual à Alemanha sob Adolph Hilter. Na noite de sábado, o grupo que se autodenomina “300 do Brasil”, muito embora seja formado por uns poucos manifestantes – incluindo Sara Giromini, que se autoapelida Winter —, seguiu com tochas e máscaras para a frente do STF para gritar contra o ministro Alexandre de Moraes. “Viemos cobrar, o STF não vai nos calar... Ministro, covarde, queremos liberdade”, gritavam.
Moraes conduz o inquérito das fake news que atingiu Sara, apreendendo seu celular e notebook. Os movimentos anti-STF são amplamente acolhidos pelo Governo do presidente Bolsonaro, o que deixa o Brasil numa arena cada dia mais delicada. À flor da pele, o país reage a atos autoritários do Governo e de seus apoiadores, em plena pandemia que já matou quase 30.000 pessoas, segundo os dados oficiais, sem contar aqueles que não foram notificados como covid-19.
Num momento em que o mundo assiste estarrecido aos protestos nos Estados Unidos contra a morte injustificada de George Floyd, um homem negro assassinado por um policial, o desfecho das manifestações em São Paulo e no Rio de Janeiro com bombas de gás, ganha um tom metafórico. A onda radical testa seus limites no Brasil em que o presidente se mostra confortável em apoiar movimentos antidemocráticos para se sustentar na presidência.