O artigo abaixo foi publicado na Folha de São Paulo desta quinta-feira 14 pela economista Laura Carvalho:
Há um ano, a vereadora Marielle Franco e seu motorista Anderson Gomes foram assassinados no centro da cidade do Rio de Janeiro, desencadeando uma onda de protestos e homenagens no Brasil e no exterior.
A primeira etapa das investigações, encerrada na terça-feira (12), levou finalmente à prisão do sargento reformado da Polícia Militar Ronnie Lessa, suspeito de ter atirado na vereadora, e do ex-PM Élcio Vieira de Queiroz, acusado de dirigir o veículo.
Com a revelação de que Lessa mora no mesmo condomínio do presidente Jair Bolsonaro, tem uma casa luxuosa em Angra dos Reis e guardava 117 fuzis, são muitas as perguntas que podem nos desviar do que deve ser o maior foco de pressão da opinião pública a partir de agora: a busca pelos mandantes do crime.
Lessa seria membro de uma organização criminosa formada por matadores de aluguel apelidada de Escritório do Crime e ligada a milícias. A quadrilha foi revelada por Orlando de Curicica em abril do ano passado, miliciano preso até então apontado como assassino de Marielle e Anderson.
Segundo reportagem da revista piauí, o Ministério Público suspeita que o Escritório do Crime esteja envolvido em pelo menos 19 homicídios não esclarecidos nos últimos 15 anos, cobrando entre R$ 200 mil e R$ 1 milhão por assassinato. Segundo Curicica, a Delegacia de Homicídios do Rio de Janeiro recebia R$ 200 mil por mês para não identificar os criminosos.
Após essa denúncia, a procuradora-geral da República, Raquel Dodge, criou uma força-tarefa da Polícia Federal para acompanhar os rumos das investigações no Rio. A Operação Os Intocáveis, deflagrada em janeiro, teve como alvo o major da PM Ronald Alves, preso, e o ex-capitão do Bope Adriano Magalhães, ainda foragido.
Ainda que deixemos de lado os possíveis vínculos entre a família Bolsonaro e o Escritório do Crime —evidenciados pela contratação de familiares de Adriano Magalhães no gabinete de Flávio, por exemplo—, o fato é que as primeiras declarações do presidente Jair Bolsonaro a respeito da prisão dos suspeitos de matar Marielle e Anderson minimizam a ligação do crime com os grupos paramilitares, que, além de controlar territórios e atividades econômicas na zona oeste do Rio, estão intrincados em diversas esferas do poder público.
Quando utiliza a ocasião para indagar-se sobre um possível mandante da facada que recebeu, Bolsonaro parece querer encobrir que a investigação sobre os mandantes do assassinato de Marielle é também uma investigação sobre a milícia carioca e suas crescentes redes de influência e representação no Estado.
Parafraseando Auguste de Saint-Hilaire, um jornalista escreveu no Twitter que “ou o Brasil acaba com a milícia ou a milícia acaba com o Brasil”.
A pressão da opinião pública pelo esclarecimento do crime contra Marielle e Anderson é certamente a maior oportunidade que já tivemos para desmontar essa “metástase sem controle” que se instalou no Estado brasileiro —utilizando a metáfora feita por uma autoridade que participa das investigações em declaração à revista piauí.
A primeira etapa, que culminou nas prisões dessa semana, aponta o caminho: um meticuloso trabalho de inteligência, a garantia de autonomia aos investigadores e o fiel cumprimento da lei.
Resta saber se o governo e o ministro Sergio Moro estarão interessados no que poderia ser, essa sim, nossa versão da operação anti-máfia Mano Pulite da Itália.
Não é o que sugerem nem o discurso nem o desejo de conceder a bons e maus policiais ampla licença para matar.