Francisco Alexandre, ex-diretor eleito da Previ
Brasil247
Os sistemas de previdência e proteção social dos países têm como objetivo assegurar condições dignas para as pessoas na velhice, possibilitando a quem contribuiu um benefício justo e, aos miseráveis que, sequer tiveram condições de contribuir para o sistema, um benefício de manutenção das condições mínimas de sobrevivência.
A lógica é o reconhecimento da sociedade de que “todos têm o direito à vida”, enunciado contido no artigo 3º da Declaração Universal dos Direitos Humanos. E vida nesse caso quer dizer cidadania, dignidade, direito à alimentação, à saúde e ao respeito enquanto pessoa.
A proposta de Reforma da Previdência do governo desrespeita esses princípios e foca os ajustes na parte mais pobre da população. A reforma cria um abismo no sistema de proteção social do país, ao ponto de pouco se vislumbrar a possiblidade de aposentadoria, caso seja aprovada como está. Entre os riscos está a mudança das regras para desobrigar os empresários com o Sistema de Capitalização, onde administradoras e bancos irão gerir os recursos arrecadados.
A proposta em debate não observa o que tem acontecido em reformas recentes de outros países, as quais têm buscado equilibrar os benefícios menores, respeitam os que já estão no sistema, com as novas regras aplicadas somente para novos entrantes. A proposta do governo Bolsonaro não observa ainda que na maioria dos países há dois patamares de idade para ter direito ao benefício – o benefício integral ou o de forma antecipada, sendo a regra para obtenção do benefício integral o critério de idade mais o tempo mínimo de contribuição (sem a escala da proposta do governo, que inicia em 60% com 20 anos de contribuição).
Como se sabe, os sistemas de previdência mundo afora são compostos na maioria por três pilares: público, complementar obrigatória e complementar opcional. Bem diferente da proposta pelo governo, de pilar único e com obrigação apenas para os trabalhadores. Ou seja, o que deveria ser complementar ao sistema público, o governo que seja o principal. Isso é bem diferente do que são os atuais fundos de pensão de empresas como do Banco do Brasil, Petrobrás, Bradesco, dentre outras, que são complementares à Previdência Social.
A proposta de capitalização aumentará ainda mais o nível de pobreza do país, pois esse caminho levará todos a ter benefício mínimo, ou seja, os benefícios projetados serão menores que um salário mínimo. É isso que mostra a experiência do Chile, ou qualquer exercício que se faça sobre o modelo proposto.
Para se ter uma ideia, uma contribuição de 10% do salário no sistema de capitalização, considerando que o salário crescerá real 1% ao ano, com juros reais anuais de 4,5% ao longo do período de 40 anos, com uma taxa de administração de 1,5% e expectativa de sobrevida de 20 anos (tempo de pagamento após a aposentadoria), possibilitará benefícios próximos aos percentuais abaixo:
Tempo de trabalho em anos |
Percentual de reposição |
20 |
15,58% |
25 |
21,54% |
30 |
28,55% |
35 |
36,91% |
40 |
43,45% |
Como mostram os dados, a perda para 85% dos segurados, aqueles com até dois salários mínimos, será enorme. Estes terão de contribuir mais do que tem sido anunciado. Ou seja, a parte mais pobre do sistema terá que aumentar em 33% a contribuição, por período maior, para ter a perspectiva de um benefício 60% menor, mesmo trabalhando 40 anos até a aposentadoria.
Os dados revelam o que é a perspectiva de reposição nos sistemas de capitalização, ou seja, a natureza complementar do modelo. É assim que é utilizado mundo afora. Lá estabelece-se o nível de reposição do sistema público e, para se fazer cumprir os princípios básicos dos sistemas proteção social, são criados fundos de pensão com contribuições entre patrões e empregados para fazer face à diferença entre o benefício pago no sistema geral e o salário de cada pessoa.
Por trás desses dados de perda para um elo do sistema está a parcela que terá benefícios com a medida que o governo pretende implantar, os empresários. Para estes, nas novas contratações deixarão de ter a obrigação dos atuais 20% a 22% de contribuição patronal, que, numa conta simples, se a taxa de desemprego cair para 8%, ainda muito alta, mas com 5 milhões de pessoas retornando ao mercado de trabalho, o setor empresarial deixará de pagar em 10 anos para o sistema valores próximos a R$ 225 bilhões.
Somem-se a esses benefícios mais de R$ 50 bilhões ao ano, em média, de desoneração concedida ao longo de anos, que projetados por mais 10 anos chega-se a outros R$ 500 bilhões. Mais a necessidade ajuste nas alíquotas dos empresários do agronegócio, setor que representa 23% do PIB e paga 2% apenas para o INSS. Há ainda a cobrança de inadimplência, valor superior a R$ 350 bilhões, que, se estabelecida meta de recuperação de créditos, teria potencial de recebimento de, no mínimo, 30% desse valor, outros R$ 100 bilhões, conforme apontam especialistas.
A retirada da multa de 40% do FGTS para trabalhadores aposentados representará desoneração para o mesmo segmento. Hoje trabalham nessa condição 5,1 milhões de pessoas, segundo o IBGE. Se utilizado o mesmo critério de salário médio nacional de R$ 2.100,00, representará ao longo de 10 anos mais outros R$ 100 bilhões de economia para empresários. Isso sem considerar a multa de 40%.
As contas não deixam margem a dúvida, como no mundo contábil. Se sai de um lado obrigatoriamente terá de entrar em outro. E a parcela penalizada e convocada para pagar a conta está apenas de um lado do balcão, os trabalhadores. No quesito ônus da mudança, o governo teve uma predileção por colocar a carga maior ainda para as mulheres, incluídas aí trabalhadoras rurais e professoras, que terão de trabalhar mais e receber menor benefício, enquanto desonera em valores vultosos todos os segmentos empresariais.
Como mostram as contas, para os trabalhadores apenas do INSS terão de arcar com R$ 720 bilhões nos próximos dez anos, incluídas aí a maldade do BPC, para compor o R$ 1 trilhão desejado pelo governo. Enquanto isso, contas preliminares demonstram com facilidade que as desonerações, no mesmo período, serão bem maiores que a economia pretendida pelo governo. Ou seja, penaliza os que trabalham em benefício de quem mais tem, caso se aprove a proposta de Reforma da maneira como está. Isso, mais a desregulamentação que acaba com o sistema de proteção social.
No cerne da discussão está um ponto bem maior a ser avaliado pela sociedade, que é decidir a que níveis de desigualdade, de concentração de riqueza e que nível de pobreza cada um dos que estão hoje por aqui desejam para o futuro. Para diminuir as desigualdades é preciso apontar em outro sentido e encurtar o fosso que se tem hoje no país. Para começar, seria interessante a instituição de imposto progressivo, pois nosso país tem nos pobres a maior carga percentual de tributos.
Francisco Alexandre é ex-diretor eleito de Administração da Previ e ex-presidente da BRF Previdência