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22 de Fevereiro de 2019 às 07:57

97% dos países têm sistemas públicos de previdência.

Brasil vai na contramão?


Crédito: Reprodução

Brasil247

Francisco Alexandre, ex-diretor da Previ

O país acompanha o enredo de reforma da previdência há meses, com muitos experts a opinar sobre o que deve ser feito. Discussão sempre em sentido único, opinião noutro sentido parece ser algo proibido e não veiculado, chegando ao ponto de o ministro da Fazenda propor o fim do sistema de proteção social.

O Relatório World Social Protection Report 2017-2019 da OIT (Organização Internacional do Trabalho), no entanto, mostra que a realidade é bem diferente do que tem sido apresentado como exemplos para justificar a ideia de se alterar substancialmente o sistema de previdência no país. Num universo de 192 países, 186 têm sistema público de previdência, ou 97%, que vão desde sistemas contributivos, sistemas mistos com e sem contribuições e sistemas totalmente custeados pelo Estado.

Relatório da OIT também revela que o nível de cobertura dos sistemas é liderado pela Europa e Ásia Central, com níveis de cobertura chegando a 95% das pessoas em idade de aposentadoria, enquanto a África, com 29%, fica no outro extremo. Nas Américas, o nível de cobertura atinge 86% e na Ásia, 78%.

Olhando para os espelhos, é de se concluir que a discussão a ser enfrentada é que tipo de nação se deseja ser no futuro. Tem-se, portanto, uma escolha entre ter um país em que os idosos serão desprovidos de cobertura social ou o caminho no qual as pessoas vislumbrem uma velhice digna.

Discute-se a mudança do atual sistema como se não houvesse que pensar no pacto geracional e o impacto na vida das pessoas. Como se fosse possível a um trabalhador poupar de forma ininterrupta durante toda a vida laboral ou ainda, se ele fosse informado o suficiente para tomar decisão de investimentos e criar riqueza suficiente para sobreviver, a partir de pequenos depósitos mensais descontados de um salário de R$ 1.000,00 mensais. Infelizmente, a realidade vem do país que inspira o sistema de capitalização que se pretende implantar, o Chile. E lá, não tem sido a maravilha que tentam passar.

O Chile, fonte inspiradora do ministro da Fazenda, até mesmo porque ele trabalhou para aquele governo nos anos 1980, tem se mostrado um erro a ponto de já ter havido reformas para readequação do sistema com a reintrodução do sistema público de pensões, como forma de cobrir valor mínimo para sobrevivência de aposentados que não fizeram poupança suficiente para ter benefício no sistema de capitalização. O Estado chileno assumiu em 2008 o pagamento de 50% do salário mínimo para os 60% mais pobres. Em 2016, comissão criada para reavaliar o sistema sugeriu aumentar o benefício não contributivo para os 80% mais pobres da população.

Naquele país, em 1981 o Estado ficou com o compromisso de bancar o antigo sistema de repartição simples (similar ao nosso atual), que vai até meados da década de 2050. Ou seja, ficou para a sociedade a conta com as pensões, enquanto as administradoras de planos ficaram os recursos financeiros que, na maioria, têm sido aplicados fora do país para gerar riqueza apenas para grandes grupos econômicos.

E agora, quase quarenta anos depois, o Estado chileno foi chamado para resolver o problema das pensões criados pelas administradoras privadas de planos. Entidades que cobram altas taxas de administração, impeditivas de crescimento dos valores depositados pela maioria dos trabalhadores chilenos e, por consequência, colocando o sistema de previdência do Chile entre os piores com níveis de reposição em patamares de 30% do salário.

A Previdência em países como Nova Zelândia, Austrália, Dinamarca, Suíça e Países Baixos é composta por três pilares, o primeiro totalmente financiado pelo Estado, enquanto o segundo pilar é sustentado mediante contribuição a fundos de pensão obrigatórios para empresas e empregados. E um terceiro pilar opcional para os que desejam ou tenham algum tipo de patrocínio dos empregadores para adesão a um fundo de previdência privada. Na Suíça, em 2017, a sociedade derrotou em plebiscito a proposta de alteração nas regras da previdência que elevava para 65 anos a idade mínima de aposentadoria, bem como a criação de sistemas flexíveis de previdência. Em contrapartida, no mesmo plebiscito, os suíços determinaram ao Parlamento que fosse incluído artigo que trata da segurança alimentar da população.

Outro grupo de países como a França, Estados Unidos, Espanha, Portugal, Alemanha e Inglaterra têm o primeiro pilar contributivo. E, na maioria deles, o segundo pilar mediante contribuição dos empregadores e trabalhadores de forma obrigatória, além de um terceiro pilar optativo para os que desejarem realizar poupança para consumo na velhice. O governo inglês, ciente de que as pensões públicas estavam aquém das necessidades das pessoas, determinou estudo sobre a situação que culminou em 2012 com a criação do NEST (National Employment Saving Trust), com adesão automática e obrigatória para empresas e trabalhadores desde 2017, com contribuição distribuída entre o governo, patrões e empregados de 8%. O NEST é adicional ao público e tem a missão de complementar os valores pagos pelos sistemas públicos daquele país.

Segundo o relatório Pensions at a glance, de 2017, editado pela Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Económico (OCDE), "o primeiro nível compreende programas destinados a garantir que os aposentados alcancem um padrão de vida mínimo e absoluto. Os componentes de segunda linha, relacionados aos rendimentos, são destinados para atingir algum padrão de vida-alvo na aposentadoria em comparação com o que ocorre quando se trabalha". Ainda segundo o relatório, todos os países da OCDE têm algum tipo de proteção social para as pessoas durante a velhice.

O relatório da OCDE revela também que as alterações nos sistemas de previdência espalhados mundo afora têm centrado a ação na solução de desequilíbrio, a partir de medidas que corrijam distorções nos benefícios daqueles que ficam na parte superior da pirâmide. O NEST da Inglaterra é um exemplo disso.

No Brasil, o debate sobre a reforma, medidas, ajustes e caminhos que o país deve seguir corre em todas as direções. Contudo, as declarações de que só com mudança profunda no Sistema de Previdência será possível resolver a crise econômica do país não fica em pé se forem trazidos à luz do dia a origem do déficit no Sistema de Previdência, os ajustes e adequações necessários. Soma-se a esses fatores outro mais importante, que é a ausência de resultado financeiro imediato para o Estado decorrente da reforma.

Entre os itens que seria necessário emergir está a cobrança da contrapartida dos que mais possuem, de muitos que não cumprem com os compromissos tributários, de devedores contumazes, mas poderosos o suficiente a ponto de não serem perturbados pelo Fisco para solver dívidas eternas. Há ainda as renúncias fiscais para grandes empresas que são sorvedouros de dinheiro público sem comprovação de benefício adicional para a população.

Na proposta anunciada pelo governo está o chamando "novo modelo", a capitalização. Novo. Nem tanto assim. O sistema de capitalização mais radical, o do Chile, tem se mostrado um desastre para os trabalhadores daquele país. Nos países em que o primeiro pilar é baseado em contas individualizadas, como a Holanda, o sistema só se sustenta porque é obrigatório e automático para empregadores e empregados, além da contrapartida dos governos via renúncia fiscal.

A introdução de um sistema de contas individualizadas, como o anunciado, fará o Brasil caminhar na contramão dos países centrais, pois o sistema de proteção social é uma definição que caminha junto com a própria sociedade. E a esta cabe definir o que pretende ser como povo e nação. Um exemplo foi o dos suíços em 2017, ao revogarem alterações aprovadas pelo Parlamento daquele país, e ainda por cima aprovando resolução determinando ao congresso a inclusão da segurança alimentar da população como item da constituição daquele país.

A discussão sobre previdência não pode ser feita como pretendem os agentes de mercado, que sempre olham o curto prazo, enquanto o Congresso Nacional precisa observar o que pode acontecer com a sociedade a cada lei que aprova. Assim, entre pontos que precisam ser acordados deve estar a definição do que será o Sistema de Previdência do país, delimitando os pilares dos sistemas, o que será sistema público, sistema complementar obrigatório ou não e, ainda, se adotaremos um terceiro pilar opcional.

A criação de um sistema de contas individuais capitalizadas, tão somente, como anunciado, será um retrocesso no sistema de proteção social. A proposta coloca para o trabalhador decisões sobre temas que ele não tem conhecimento como valores de contribuições, riscos envolvidos, taxas de administração, risco de longevidade e taxa de retorno dos investimentos.

Sobre taxa de retorno dos investimentos vale olhar novamente para o sistema chileno para se ter uma visão preliminar do que poderá acontecer. Naquele país foram vendidas aos trabalhadores taxas reais anuais próximas a 10%, situação que não se confirmou. E não houve alerta para as taxas extorsivas cobradas pelas administradoras de planos.

É estranho que no projeto de reforma e nas discussões em curso não se têm ouvido dos entendidos no problema abordagem sobre esses pontos. Em vez disso, todos miram, outra vez, na base da pirâmide, propondo reduzir benefícios, instituir idade mínima fora da realidade de muitas regiões do país, benefícios menores que o salário mínimo, ou seja, o fim do sistema de proteção social, sob o argumento de que é desejo do mercado.

O mercado, ou seja, os 10% da população que já detêm mais de 61% da riqueza do país, sendo que desses os 1% mais ricos abocanham 28% conforme dados do economista Thomas Piketty, mantém o Brasil como o país mais desigual do planeta. O governo anuncia querer economizar R$ 1 trilhão em dez anos. Entenda-se por economizar transferir riqueza de pobres para ricos por meio de desonerações e renúncias fiscais concedidas há anos.

Renúncias como as prometidas no projeto do governo basicamente excluem a classe patronal da responsabilidade de contribuição no chamado "novo sistema", que será basicamente um plano de previdência similar a um fundo de pensão, no qual deixará existir a responsabilidade do Estado com a Previdência Social, a exemplo do que aconteceu no Chile, passando o risco e a obrigação de constituir um fundo de previdência para os trabalhadores.

Por fim, entre todos os cidadãos, ainda há os que continuarão diferenciados. Por exemplo, os militares, grupamento que representa o segundo maior déficit do sistema, com mais de R$ 40 bilhões ano. Para esses, sob o sofisma de que não se aposentam, permanecem as mesmas regeras com pensões vitalícias para esposas e filhas solteiras. O governo, majoritariamente militar, age e convalida a ideia de que esse segmento deve ter tratamento diferenciado dos demais brasileiros.

 

 Francisco Alexandre é ex-diretor da Previ e ex-presidente da BRF Previdência


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