Mais de um terço da população brasileira acima de 16 anos não possui conta bancária nem acesso a empréstimos e a poupança. A maioria tem baixa renda, pouca escolaridade e vive em regiões menos desenvolvidas.
Exclusão tira dinamismo da economia
Cartão? Só o quase extinto telefônico. Talão de cheque? Ele viu na mão dos outros, mas já faz um tempo. Entrar numa agência? Raramente: para "sentir o ar-condicionado" ou, se a lotérica está fechada, para pagar as contas de água e luz. "Não tenho dinheiro. Para quê conta em banco?", pergunta, rindo, o baiano Miraltino Dias, de 65 anos. "Banco para mim é aquele de sentar ou onde os ricos guardam as coisas", completa ele, enquanto reúne materiais para reciclagem sob o sol do meio-dia.
A única carteira que Miraltino teve na vida é a de identidade. "Nunca precisei guardar dinheiro. É tão pouco, que eu vou pegando e soltando", diz ele. Nos melhores meses, as andanças pelo lado sul do Distrito Federal o fazem "pegar" perto de R$ 700, que ele "solta" com os remédios para a mulher, diabética, e com as despesas da casa, em Águas Lindas, no Entorno goiano, onde também moram dois dos quatro filhos.
Sem aposentadoria nem outros benefícios fixos, o catador não tem a pretensão de um dia abrir conta em banco. "Se me dessem um cartão desses com R$ 1 milhᆪo dentro, não ia adiantar nada. Não saberia nem por onde começar a mexer naquela máquina", comenta."Esse negócio de banco só interessa para quem faz conta alta. Não é o meu caso."
Miraltino é um dos 52,8 milhões de brasileiros acima de 16 anos sem qualquer vínculo bancário. As instituições financeiras avançaram pelo país na última década, se modernizaram, zelaram pela liquidez, mas não conseguiram impedir que uma multidão de trabalhadores continuassem à margem do sistema.
"A filosofia dos bancos é a do lucro. Claro que ainda prevalece uma natureza restritiva na definição dos clientes", avalia o presidente da Associação Brasileira de Entidades Operadoras de Microcrédito e Microfinanças (Abcred), Almir Pereira da Costa.
Desafio
Estudo feito no ano passado pela Confederação Nacional da Indústria (CNI), em parceria com o Ibope, fortalece o desafio da chamada inclusão financeira, conceito que surgiu menos de uma década atrás.
O perfil dos sem-banco esbarra em baixos níveis de renda e escolaridade. Não à toa, esse grupo se concentra nas regiões pobres. "Os bancos parecem não entender que esses clientes podem não gerar lucro, mas representam desenvolvimento econômico",diz Costa.
Crédito, poupança, caixa eletrônico e outros adereços bancários compõem uma realidade distante da jovem Maria da Paz Pereira Batista. Recém-chegada à capital federal para "tentar a vida", a piauiense de 18 anos mora de aluguel em Ceilândia, a cerca de 15km da agência mais próxima. Do salário de repositora em supermercado, não sobra nada dois dias após o pagamento. "Queria guardar alguma coisa lá no banco, porque, se ficar na minha mão, é pior", conta.
Mesmo assumindo a facilidade em gastar o pouco dinheiro, Maria se empolga com a vontade de poupar para encher a residência de móveis novos e pagar a faculdade de direito que sonha fazer. "Acho que não deve ser uma coisa de outro mundo ter conta em banco", diz ela. No Nordeste, onde os pais da jovem vivem, metade dos adultos não possui vínculo bancário. "Os meus até tinham antigamente, mas aí 'sujaram o nome' e nunca mais", emenda.
O mundo começou a falar em inclusão financeira sete anos atrás, quando a experiênpioneira de microcrédito, em Bangladesh, levou o Prêmio Nobel da Paz. A ideia de emprestar pouco dinheiro para pessoas de baixa renda e sem acesso às formas convencionais de crédito se espalhou. De lá para cá, o Conselho Monetário Nacional (CMN) editou e atualizou uma norma para os bancos destinarem 2% do saldo de depósitos à vista para essa finalidade.
A taxa de bancarização no Brasil - conceito novo, referente ao universo das pessoas com algum vínculo bancário - supera a média da América Latina e do Caribe e de países como México e Peru. "Há um avanço em termos de inclusão, mas nossa preocupação é com a qualidade desse acesso. Oferecer ao pobre cartão de crédito com muita liberdade e taxas altas pode ser pior", pondera o chefe da Divisão de Avaliação de Impacto e Inclusão Financeira do Banco Central, Fabiano Coelho.
Maria das Graças Lopes Pereira, 41 anos, se vira como pode para colaborar com o marido, ajudante de pedreiro, e sustentar a casa e os dois filhos. Vende joias, cosméticos, forros de cama, e ainda trabalha de manicure na garagem. O dinheiro que entra em um dia, conta ela, sai no outro. "Não tenho condições de comprar muita coisa, para que crédito? Para usar o que não tenho e me endividar? Eu não quero", diz a maranhense, sem conta e sem dívidas.
Na única vez em que procurou um banco, Maria foi alertada pelo gerente sobre um erro na data de nascimento da Carteira de Identidade e nunca mais voltou. Se mudar de ideia, precisará dedicar pelo menos uma manhã para tomar o ônibus e ir até a agência mais perto. "Guardo meu dinheiro aqui mesmo", conta, mostrando o cofrinho. "O que tem aí é para os meninos (o casal de filhos, de 18 e 13 anos), para quando eles precisarem."
Em cofres improvisados, no fundo do guarda-roupa ou, até hoje, embaixo do colchão, milhões de brasileiros alimentam um jeito próprio de poupar. "Nosso desafio é levar o banco até essas pessoas, estabelecer uma relação de confiança para mostrar que elas podem viver sem a conta, mas com ela terão mais disciplina financeira", defende o superintendente de Microcrédito do Santander, Jerônimo Ramos. A instituição foi a primeira a instalar uma agência em favela no Brasil.
A bancarização já integra o leque de cidadania. É encarada como forma de inclusão social e ajuda a ilustrar o dinamismo e o grau de formalização de uma economia. O imenso contingente de brasileiros à margem dos bancos reflete dificuldades mais estruturais do que culturais, na avaliação de um dos gerentes do Sebrae Nacional, Paulo Alvim. "A exclusão é decorrência de dificuldades de acesso, como restrições cadastrais", exemplifica.
Fonte: Correio Braziliense