Governo Dilma Rousseff tentou mudar panorama de juros altos e ganhos fáceis, mas não conseguiu resistir a pressões do mercado
por Eduardo Maretti, da RBA
São Paulo – A temporada de divulgação dos lucros trimestrais dos bancos brasileiros mostra uma verdade recorrente: os principais atores do sistema financeiro do país não têm do que reclamar. Com R$ 4,419 bilhões, o banco Itaú obteve gigantesco crescimento de 27,3% no lucro líquido nos três primeiros meses de 2014 na comparação com o mesmo período do ano passado. O lucro do Bradesco, de R$ 3,473 bilhões no trimestre, expandiu-se em 18% na comparação com os primeiros três meses de 2013.
Entre os cinco gigantes do sistema financeiro do país, três são instituições privadas (Itaú, Bradesco e Santander) e dois estatais (Caixa Econômica Federal e Banco do Brasil). A Caixa é a única do quinteto que ainda não divulgou os lucros do primeiro trimestre. O Banco do Brasil, maior instituição financeira do país, registrou crescimento no lucro líquido de R$ 2,678 bilhões no período, valor 4,7% superior ao do ano passado (R$ 2,557 bilhões). O Santander foi o único entre os cinco maiores que apresentou queda: lucrou R$ 518,4 milhões, 14,9% menos do que o resultado de 2013.
A situação do banco espanhol difere da concorrência porque, assim como o HSBC, sua matriz é fora do Brasil. “Como o sistema financeiro mundial está passando por um momento de restruturação, o resultado de Santander e HSBC estão afinados com o que está acontecendo em nível mundial. São bancos que estão sofrendo mais com a questão da crise mundial e também não têm uma escala que os permita concorrer em pé de igualdade com os grandes bancos privados nacionais”, explica Regina Camargos, economista do Departamento Intersindical de Estatística e Estudos Socioeconômicos (Dieese).
Seja como for, a expansão dos lucros dos bancos privados (os estatais são protagonistas de políticas públicas) está muito longe de trazer qualquer tipo de contrapartida, seja via tarifas e crédito mais baratos, seja por meio da melhoria na qualidade do serviço, ou, menos ainda, revertendo uma parcela desses ganhos astronômicos em investimentos produtivos. “Não é esta a lógica do rentismo, especialmente no sistema financeiro brasileiro, muito enviesado pela lógica do ganho rápido, do curto prazo”, diz Regina.
No caso brasileiro, esse lucro fácil e sem limites é impulsionado pelos juros altos, inerentes à política econômica baseada no chamado tripé macroeconômico vigente no Brasil desde 1999, ancorado no câmbio flutuante, metas de superávit primário e metas de inflação. A política de juros do governo federal está atrelada à inflação segundo uma equação ouvida diuturnamente na mídia: quanto mais alta a inflação, maior a necessidade de elevação dos juros.
Apesar da aridez do tema, a explicação para a defesa dessa equação é simples: o Tesouro Nacional emite títulos que são comprados pelo mercado ajudando o governo a honrar seus compromissos. Os bancos ganham quando o governo resgata esses títulos: quanto maior o juro, mais alto o lucro do mercado financeiro com os títulos do Tesouro Nacional, que, afinal, banca a chamada farra dos juros.
“Os bancos têm três fontes de lucro: empréstimos, tarifas cobradas pelos serviços e, o caso mais brasileiro, a questão da Selic, os títulos do governo federal. Os bancos ganham fácil nessas duas formas, a Selic e tarifas. São duas molezas que, no resto do mundo, não ocorre nessa intensidade”, constata o economista Amir Khair, mestre em Finanças Públicas pela Fundação Getúlio Vargas e secretário municipal de Finanças na gestão da prefeita Luiza Erundina em São Paulo (1989-1992). “Essa situação existe pela omissão do governo. Não só do atual, mas dos governos de Fernando Henrique, de Lula e de Dilma”, diz.
Os especialistas não identificados com a visão neoliberal da economia avaliam que a presidenta Dilma Rousseff tentou mudar essa lógica na primeira metade do mandato. As opiniões divergem quanto ao que veio depois; os motivos do aparente fracasso dessa tentativa. O governo Dilma reduziu gradativamente a Selic e conseguiu mantê-la em 7,25% até abril de 2013. A partir de então, depois de nove aumentos consecutivos, está hoje em 11%.
“Existe um tripé macroeconômico de difícil rompimento. A presidenta Dilma até tentou isso no começo, reduzindo a taxa de juros”, lembra Evilásio Salvador, professor de Economia da Universidade de Brasília (UnB). “Nos últimos 18 meses, houve forte pressão da elite financeira, com comentaristas econômicos da imprensa a serviço desse setor na economia para a retomada das taxas de juros e, portanto, retomada também das margens de lucros dos bancos. Os resultados (de aumento dos lucros dos bancos) do primeiro trimestre de 2014 mostram essa situação”, diz Salvador. “Os principais comentaristas econômicos dos grandes meios de comunicação ou são assessores econômicos vinculados ao setor financeiro ou fortemente têm alguma ligação com esse setor econômico aí instalado, com esse tripé da economia”, afirma Salvador. “Isso gera um caldo de cultura na sociedade que prega que o remédio da taxa de juros para combater a inflação é o único.”
“O Banco Central, o governo, por uma orientação de politica econômica, tentou jogar a Selic para patamares um pouco mais civilizados. Houve forte resistência por parte do mercado financeiro”, lembra Regina Camargos, do Dieese. “Dilma tentou fazer um contraponto, mas ela foi, de fato, atravessada tanto por resistências internas, quanto por uma conjuntura internacional. Houve uma virada na política norte-americana. E quando o Banco Central americano resolve mudar a política monetária, o mundo inteiro sofre e nós não somos diferentes.”
Amir Khair concorda que o governo Dilma “fez uma tentativa de reduzir a taxa de juros”. Inclusive com o Banco do Brasil e a Caixa Econômica Federal , em meados de 2012, reduzindo juros para tentar induzir o mercado. “Foi uma política correta”, avalia Khair. “Claro que aí houve uma pressão muito grande, inclusive internacional, com objetivo de reduzir a oferta de crédito dos bancos oficiais.”
Caixa e BB, na avaliação dos especialistas, foram instrumentos essenciais, no mínimo, para o país atravessar a crise. “Se não fossem os bancos públicos, incluindo BNDES, a economia brasileira seria muito menor do que é. Ela só tem a pujança que tem porque tem bancos que estão cumprindo ainda esse papel de financiar o desenvolvimento”, diz Regina Camargos.
O aumento do crédito no Brasil era de 38,4% em relação ao PIB, e chegou a 49% em 2011, durante a crise. “Foi um incremento de 10,7% como decorrência de políticas do governo, operacionalizadas pelos bancos públicos. E 77% desse incremento é explicado pela participação de BB, Caixa e BNDES”, aponta Evilásio Salvador.
No momento, não há luz no fim do túnel. Para Khair, o governo Dilma não foi suficientemente forte para conseguir mexer nas estruturas. “Esse governo sucumbiu à pressão do sistema financeiro, embora seja muito melhor você ter um Alexandre Tombini como presidente do Banco Central do que Armínio Fraga, Gustavo Franco e Gustavo Loyola, os presidentes do BC no governo de Fernando Henrique, que praticaram Selic a um nível de 20%.”
Na opinião de Khair, seria necessário colocar a Selic ao nível da inflação. “Este é o caso dos países emergentes; nos desenvolvidos é até abaixo. Assim acabaria com esse saque ao Tesouro Nacional.” Outra medida seria colocar regras nas tarifas bancárias. “Mas os bancos têm moleza nessas duas fontes, Selic e tarifas, e podem se dar ao luxo de selecionar os clientes, e cobrar taxas de juros de botar inveja em agiota.”
Para Evilásio Salvador, no cenário de postura agressiva dos bancos públicos na oferta de crédito e Selic reduzida, as instituições privadas seriam obrigadas a fazer um deslocamento da aplicação de ativos. “Eles sairiam das operações de tesouraria, do ganho com refinanciamento da dívida pública e alta taxa de juros, para ter que alocar em crédito, enfrentando a concorrência dos bancos públicos.”
Mas o enfrentamento ao “tripé macroeconômico” é complexo. “Não tem saída fácil. Essa armadilha de juros altos e câmbio sobreapreciado, característica típica de modelo neoliberal, domina o Brasil desde 1999, e tem o único objetivo de atender aos rentistas e financistas. Mas eles financiam uma parcela importante do setor público, 200 a 300 bilhões de reais por ano são financiados por esse setor.”
Na opinião de Salvador, as saídas dessa armadilha são três: “Pode-se ter uma saída negociada, uma transição em um próximo governo com autoridade para fazer. E isso se faz em primeiro ano de governo. Pode ter uma saída mais radical, de rompimento, e ver o que acontece. Ou uma saída que é uma não-saída, o modelo se esgotar por ele mesmo. Na minha opinião, o modelo vai se esgotar por ele mesmo."
Enquanto os bancos mantêm o controle da situação, o consumidor paga a conta. No ano passado, o Procon de São Paulo recebeu 33.701 reclamações de serviços bancários, das quais 12.619 (cerca de 37%) foram referentes a cobrança indevida.
Os dois gigantes do mercado financeiro dividem com empresas de telecomunicações os cinco primeiros lugares no ranking de empresas mais reclamadas. O banco Itaú é o segundo colocado na lista, com um total de 1897 reclamações. O Bradesco é o quinto, com 1311.
No ano de 2013, a concentração bancária foi a maior da história, segundo Evilásio Salvador. “Cinco bancos dominam o sistema financeiro. Nesse ambiente, não tem concorrência. Não tendo concorrência, dificilmente vai se beneficiar os consumidores. Essa elevada lucratividade também decorre desse mercado oligopolista”, diz.
De acordo com dados do ano passado, 83% dos depósitos bancários estão na mão dos cinco líderes do mercado: Caixa, Banco do Brasil, Itaú, Bradesco e Santander. Há 18 anos, a concentração era de 68%.