Crédito: Brasil 247
Escritor rebate tentativa de igualar crimes do Estado à resistência
Num artigo sensato e corajoso, publicado nesta quinta-feira (18) no jornal O Estado de S.Paulo, o escritor Luis Fernando Verissimo contesta a tese que se alastrou entre os veículos de comunicação conservadores, todos apoiadores do regime militar de 1964, de que a Comissão Nacional da Verdade deveria ter igualado os crimes cometidos por agentes do Estado aos atos de violência ligados à esquerda revolucionária.
"Não aceitar a diferença entre a violência clandestina de contestação a um regime ilegítimo e a violência que arrasta toda uma nação para os porões da ditadura é desonesto", diz Verissimo
Brasil 247
Logo depois que a Comissão Nacional da Verdade apresentou seu relatório final, na semana passada, apontando os nomes de 377 agentes do Estado brasileiro que cometeram crimes contra a humanidade, durante o regime militar, alastraram-se editoriais, nos veículos de comunicação conservadores, todos apoiadores do regime, sobre a parcialidade da CNV. Segundo os Marinho, os Frias e os Mesquita, era necessário também condenar os responsáveis pelos crimes cometidos pela esquerda revolucionária.
Num corajoso artigo publicado nesta quinta-feira, chamado "Os dois lados", o escritor Luis Fernando Verissimo contesta a tese de que agentes do Estado que prendem dissidentes, matam e torturam podem ser igualados a cidadãos que combatem um regime ilegítimo.
"A principal diferença entre um lado e outro é que os crimes de um lado, justificados ou não, foram de sublevação contra o regime, e os crimes de outro lado foram do regime. Foram crimes do Estado brasileiro. Agentes públicos, pagos por mim e por você, torturaram e mataram dentro de prédios públicos pagos por nós. E, enquanto a aberração que levou a tortura e outros excessos da repressão não for reconhecida, tudo o que aconteceu nos porões da ditadura continua a ter a nossa cumplicidade tácita. Não aceitar a diferença entre a violência clandestina de contestação a um regime ilegítimo e a violência que arrasta toda uma nação para os porões da ditadura é desonesto", diz ele.
Verissimo cobra ainda um pedido de desculpas dos militares. "Enquanto perdurar o silêncio dos militares, perdura a aberração. E você eu não sei, mas eu não quero mais ser seu cúmplice."
Leia a íntegra do artigo de Luis Fernando Veríssimo:
Os dois lados
Na reação ao relatório da Comissão da Verdade sobre as vítimas da ditadura afirma-se que, para ser justo, ele deveria ter incluído o outro lado, o das vítimas da ação armada contra a ditadura. Invoca-se uma simetria que não existe. Nenhum dos mortos de um lado está em sepultura ignorada como tantos mortos do outro lado. Os meios de repressão de um lado eram tão mais fortes do que os meios de resistência do outro que o resultado só poderia ser uma chacina como a que houve no Araguaia, uma estranha batalha que - ao contrário da batalha de Itararé - houve, mas não deixou vestígio ou registro, nem prisioneiros. A contabilidade tétrica que se quer fazer agora - meus mortos contra os teus mortos - é um insulto a todas as vítimas daquele triste período, de ambos os lados.
Mas a principal diferença entre um lado e outro é que os crimes de um lado, justificados ou não, foram de uma sublevação contra o regime e os crimes do outro lado foram do regime. Foram crimes do Estado brasileiro. Agentes públicos, pagos por mim e por você, torturaram e mataram dentro de prédios públicos pagos por nós. E enquanto a aberração que levou à tortura e a outros excessos da repressão não for reconhecida, tudo que aconteceu nos porões da ditadura continua a ter a nossa cumplicidade tácita. Não aceitar a diferença entre a violência clandestina de contestação a um regime ilegítimo e a violência que arrasta toda a nação para os porões da tortura, é desonesto.
O senador John McCain é um republicano "moderado", o que, hoje, significa dizer que ainda não sucumbiu à direita maluca do seu partido. Foi o único republicano do Congresso americano a defender a publicação do relatório sobre a tortura praticada pela CIA, que saiu quase ao mesmo tempo do relatório da nossa Comissão da Verdade. McCain, que foi prisioneiro torturado no Vietnã, disse, simplesmente, que uma nação precisa saber o que é feito em seu nome.
O relatório da Comissão da Verdade, como o relatório sobre os métodos até então secretos da CIA, é um informe à nação sobre o que foi feito em seu nome. Há quem aplauda o que foi feito. Há até quem quer que volte a ser feito. São pessoas que não se comovem com os mortos, nem de um lado nem do outro. Paciência.
Enquanto perdurar o silêncio dos militares, perdura a aberração. E você eu não sei, mas eu não quero mais ser cúmplice.
Fonte: Brasil 247 e O Estado de S.Paulo