"Se ele não falar, será quebrado por dentro, pois sabemos fazer as coisas sem deixar marcas visíveis. Se sobreviver, jamais esquecerá o preço de sua valentia." A frase do capitão Benoni Albernaz, aquele que "deixava o coração em casa" ao sair para trabalhar, revelou-se profética.
Em 10 de agosto de 1974, o corpo do frei Tito balançava em uma árvore, no interior da França, pondo fim a anos de angústia, de um homem que nunca conseguiu se recuperar das torturas sofridas a partir da prisão, em 4 de novembro de 1969, primeiro no Dops, depois na Operação Bandeirantes (Oban).
O livro Um Homem Torturado, das jornalistas Leneide Duarte-Plon e Clarisse Meireles, que conta a trajetória de Tito de Alencar Lima, foi lançado na segunda-feira (14), a partir das 19h, no auditório Franco Montoro da Assembleia Legislativa de São Paulo.
"Ele levou o Fleury dentro dele. Via o Fleury em todo lugar. Foi destruído psicologicamente", atesta Leneide. Junto com a filha Clarisse, durante os dois anos e meio de trabalho, ela entrevistou mais de 30 pessoas, entre companheiros no Brasil e na França, e a irmã de Tito, Nildes.
Além de Albernaz, o delegado Sérgio Paranhos Fleury foi um dos torturadores de Tito, preso com outros dominicanos no convento de Perdizes, zona oeste de São Paulo, em 4 de novembro de 1969, como parte da Operação Batina Branca.
Os religiosos davam suporte a ações da Ação Libertadora Nacional (ALN), de Carlos Marighella. Escondiam perseguidos políticos ou os ajudavam a sair do país. No mesmo dia em que os dominicanos eram presos, o líder da ALN era fuzilado em uma emboscada na Alameda Casa Branca, em São Paulo.
Para Frei Tito, somava-se ainda o "agravante" de ter sido quem conseguiu encontrar um local para o congresso de União Nacional dos Estudantes (UNE), em 1968, em Ibiúna, interior paulista.
É fato, lembra Leneide, que mesmo no exílio, todos eram vigiados, monitorados. "Mas o Tito via o Fleury. Era o demônio que tinha se instalado nele."
O projeto do livro se originou por sugestão de um amigo e editor, quando ela contou que iria entrevistar, para a revista Carta Capital, o psiquiatra Jean-Claude Rolland, que tratou de Tito. A jornalista, que mora na França há 14 anos, conheceu Rolland durante um colóquio em Paris. "Ele nos escapou", disse o especialista Leneide, referindo-se a Tito.
Vivo, mas sem vida
Um dos grandes amigos de Tito, o frei Xavier Plassat, que hoje assessora a Comissão Pastoral da Terra (CPT), já havia constatado, conforme lembra Leneide: o dominicano morreu, de fato, na sala de tortura. Foi o que escreveu, ainda em 1986, o psicanalista Rolland: "Não há nenhuma dúvida de que Tito de Alencar morreu durante suas torturas".
Pode-se dizer que saiu vivo de lá, mas sem vida. "Tentaram atingir o mais íntimo dele, a fé, a lealdade", diz a jornalista.
Tito deixou o Brasil em janeiro de 1971, como parte do grupo de 70 militantes que foram soltos em troca da libertação do embaixador suíço Giovanni Enrico Bücher. Saiu a contragosto, anota Leneide.
"Ele não queria ser banido. Na foto dos libertados, a maioria está feliz, terão um horizonte em suas vidas. Ele aparece triste e cabisbaixo." Tito não queria deixar sua terra, sua gente.
No livro Batismo de Sangue (1983), o escritor Frei Betto, também dominicano, relata uma passagem da chegada dos banidos ao Chile de Salvador Allende. Um companheiro, Cristóvão Ribeiro, anima-se ao ver a recepção e exclama: "Tito, eis finalmente a liberdade!" Ao que ele responde: "Não, não é esta a liberdade".
Posteriormente, ele iria para a França. Seu último destino foi o convento Sainte-Marie de la Tourette - em um prédio projetado pelo arquiteto Le Corbusier - em L'Arbresle, perto de Lyon.
Desenraizamento
A jornalista cita um escritor do Togo que considera o exílio uma morte simbólica. Perde-se a identificação - com a família, a cidade, o bairro. A pessoa perde raízes. E esse "desenraizamento vertiginoso só se acentua com o tempo". Tito só piorava com o tempo. "O trágico da vida de Tito é que ele não pôde esperar."
A Igreja, naquele momento, ainda estava sob o impacto do Concílio Vaticano II, convocado pelo papa João XXIII e realizado de 1962 a 1965. Era um período de rediscussão sobre o papel social da Igreja.
No livro, as autoras falam sobre o engajamento de Tito e dos dominicanos. "O Evangelho traz uma crítica radical da sociedade capitalista. Nesse sentido, é revolucionário. Os temas da esperança, da pobreza, do messianismo, que são profundamente bíblicos, estão na fonte do movimento revolucionário. Não vejo, realmente, como ser cristão sem ser revolucionário", declarou o jovem religioso em 1972. Nascido em Fortaleza em 1945, Tito ingressou na Juventude Estudantil Católica (JEC). Chegou em 1967 a São Paulo, onde estudava Filosofia.
"Ele era engajado e identificado com o movimento de resistência", observa Leneide. Mas também alimentava dúvidas (Cristo, Marx) e fazia ressalvas. Dizia, por exemplo, que a guerrilha não tinha apoio popular. "Era o mais crítico de todos", diz a jornalista, lembrando de uma frase de Frei Betto: "O Tito, onde a gente punha ponto, ele punha ponto e vírgula".
E se ele tivesse permanecido no Brasil, poderia reestruturar sua vida? Não há como saber, pondera Leneide. "Talvez, ele tivesse se reconstruído." E lembra de outro mineiro, Henfil . (Ainda em Belo Horizonte, em início de carreira, ele se inspirara nos dominicanos para para criar os fradinhos, seus personagens Baixinho e Cumprido. O primeiro teve como fonte Carlos Alberto Ratton, irmão de Helvécio Ratton, que, em 2006, filma Batismo de Sangue, baseado no livro de Frei Betto).
Mas a lembrança é de uma homenagem de Henfil, ao dizer que todos voltaram, menos um.
Os restos mortais do religioso voltaram ao Brasil em março de 1983. Frei Betto lembra que, em liturgia na catedral da Sé, o cardeal-arcebispo de São Paulo, dom Paulo Evaristo Arns, disse que Tito encontraria, enfim, do outro lado da vida, a unidade perdida.
A jornalista assume o livro como militante, no sentido da denúncia. "O número de pessoas mortas por tortura no Brasil, ainda hoje, é assustador. O homem é a única espécie que tortura seu semelhante. Nenhuma causa é mais nobre do que denunciar a tortura", afirma, citando observação do frei Oswaldo Rezende, para quem lembrar a história de Tito é mais do que recordar o que se passou, "mas criar também um dever, uma exigência de justiça".
No momento em que se completam 50 anos do golpe, o termo "justiça" ganha nova expressão. "Lembrar todo mundo faz bem, até a quem se beneficiou do golpe. Mas só pode haver reconciliação se quem torturou, quem matou, pedir perdão."
Em seu comentário na Rádio Brasil Atual, Frei Betto ressaltou que frei Titto foi preso e torturado com ele em 1969. "De todo o grupo de frades dominicanos que lutou contra a ditadura, foi o que mais sofreu no Dops de São Paulo com choques elétricos, queimaduras de cigarro no corpo, pancadas na cabeça", lamenta.
Segundo Frei Betto, o livro descreve em detalhes o que ele sofreu, as alucinações que teve depois de solto, a sua resistência heroica durante a tortura, todo o pensamento que ele desenvolveu a partir de sua militância cristã, de sua experiência de fé e de seu combate à ditadura.
"É um exemplo para os nossos jovens, para as novas gerações, e nós devemos cada vez mais divulgar este exemplo para que a juventude possa novamente ficar incutida de idealismo, de utopia e de projetos para mudar o mundo e o Brasil", conclui.
Fonte: Vitor Nuzzi - Rede Brasil Atual