Durante ato em homenagem a trabalhadores e sindicalistas vítimas do golpe de 64, ex-dirigentes falam da atuação de agentes da ditadura dentro das fábricas
por Vitor Nuzzi, da RBA
São Bernardo do Campo (SP) – As centrais sindicais que atuam na Comissão Nacional da Verdade (CNV) querem que não só agentes do Estado, mas empresas apoiadoras do golpe sejam responsabilizadas por apoio e financiamento à ditadura (1964-1985). Em ato realizado ontem (1º), em São Bernardo, no ABC paulista, depoimentos explicitaram modalidades desse apoio. “Algumas empresas de São Bernardo tornaram-se verdadeiros quartéis”, disse Djalma Bom, ex-diretor do Sindicato dos Metalúrgicos, ex-deputado e ex-vice-prefeito. "Havia agentes da Polícia Federal infiltrados no movimento com carteiras de trabalho assinadas, ‘esquentadas’ pelas empresas."
Também ex-funcionário da Mercedes-Benz, Djalma afirmou que a montadora tinha "uma pessoa indicada para conversar com um general", de sobrenome Queiroz. Além disso, o chefe de segurança da empresa era um major, Saturnino Franco.
O evento foi organizado para homenagear trabalhadores e sindicalistas que sofreram perseguições e violência durante a ditadura militar instaurada no país após o golpe. Na lista, mais de 400 nomes, muitos já mortos, casos de Santo Dias, Manoel Fiel Filho, Virgílio Gomes da Silva e Vladimir Herzog – todos assassinados por agentes do Estado. Na área externa do Teatro Cacilda Becker (atriz e líder da classe teatral que morreu em 1969, após sofrer um derrame cerebral no intervalo de uma peça), os homenageados receberam diplomas. Muitos foram autografados, durante o ato, por João Vicente Goulat, filho do presidente deposto em março de 1964.
Ali estava, por exemplo, o economista Osvaldo Cavignato, metalúrgico de origem, ferramenteiro na região do ABC que estudava Ciências Econômicas e ajudou a criar a primeira subseção do Dieese em São Bernardo. Em 1975, quando estava no PCB, ele foi preso e torturado durante quase dois meses. Perto dele, à espera de seu diploma, estava um antigo companheiro de cadeia, o jornalista Sérgio Gomes, criador, em 1978, da Oboré, que ainda hoje desenvolve projetos em comunicação e formação.
Para o presidente da Força Sindical, Miguel Torres, a Oboré incluiu-se como raro exemplo no movimento sindical, "que tem o defeito de não contar a história". Ele acredita que a falta de informação ajuda a espalhar uma falsa noção de que os sindicatos já não têm tanta importância. "É um engano. Todos os dias tem ataques aos nossos direitos, todos os dias tem empresários pensando em acabar com as nossas conquistas."
Da mesma forma, para o secretário-geral da CUT, Sérgio Nobre, ainda há "déficits de democracia" no mundo do trabalho. "Ainda existe ditadura dentro das fábricas. Existe muita gente para incluir, muita gente à margem da sociedade", afirmou.
O prefeito de São Bernardo, Luiz Marinho (PT), ex-presidente da CUT e do Sindicato dos Metalúrgicos do ABC, ressaltou a importância de eventos como esse para que novas gerações saibam o que aconteceu no país naquele período e percebam a importância do processo democrático. E acrescentou que existem setores que ainda precisam de mais democracia, citando meios de comunicação e o Judiciário.
Era um evento de diversas colorações partidárias, mas grande parte da mesma matriz, formada no movimento estudantil, na militância operária, na experiência católica das comunidades eclesiais de base. O ato foi aberto com o Hino Nacional, mas um dos apresentadores avisou em seguida queA Internacional seria executada ao final. Entre os discursos, quase todos breves, houve apresentações musicais e teatrais. E trilha sonora adequada ao gosto do público, com alguns clássicos: O Bêbado e a Equilibrista (João Bosco/Aldir Blanc), Desesperar, Jamais (Ivan Lins/Vitor Martins), Construção e Roda Viva (ambas de Chico Buarque), Pra não Dizer que não Falei das Flores (Geraldo Vandré).
Também foram ao ato de São Bernardo sindicalistas com atuação destacada na 1ª Conferência Nacional da Classe Trabalhadora (Conclat), em 1981, como Hugo Perez (urbanitário) e Arnaldo Gonçalves (metalúrgicos de Santos). Profissionais como o jornalista Audálio Dantas, presidente do sindicato da categoria em São Paulo à época do assassinato de Vladimir Herzog, o Vlado, então diretor de Jornalismo da TV Cultura, em 1975. E sindicalistas como Oswaldo Lourenço, 88 anos, líder portuário em 1964, um dos criadores do Comando Geral dos Trabalhadores (CGT), atuante no governo João Goulart – e que mal pôde ver o nascimento da filha, às vésperas do golpe.
Dirigente metalúrgico em São Caetano, também no ABC, Marcelo Toledo recebeu diplomas em nome de vários familiares, sete ao todo. Pais, irmãos, tios trabalhavam em Santo André e atuavam na Ação Popular (AP), um dos grupos de resistência à ditadura.
O economista Walter Barelli, 75 anos, perdeu sua cerimônia de formatura, na Faculdade de Economia da USP. O motivo foi um contratempo político. A cerimônia de formatura estava marcada para 1º de abril de 1964. "Tinha um carro de combate na porta da faculdade, soldados com metralhadoras", lembra. "Ontem mesmo (sexta, dia 31) eu e um colega estávamos lembrando da nossa formatura que não houve. Mas o importante é a gente ter condição, hoje, de contar a história. Tem muitos exemplos de heroísmo e discernimento, e tudo precisa ser contado."
Ex-diretor técnico e professor aposentado pela Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), Barelli esteve no Dieese de 1965 a 1990, e foi o diretor-técnico que permaneceu mais tempo no cargo (22 anos). Participou depois do chamado Governo Paralelo de Lula, foi ministro do Trabalho no governo Itamar Franco e secretário estadual do Trabalho em São Paulo (governos Mário Covas e Geraldo Alckmin).
Sobre reivindicações como a revisão da Lei de Anistia, ele entende que neste momento o mais importante é lembrar que a ditadura acabou há quase 30 anos. "Hoje, a população pode se manifestar. Mas tem resquícios. Alguns dizem que a política é a arte do possível. Hoje, talvez, seria possível de forma muito diferente."
Quem também testemunhou a atuação de agentes dentro de empresas foi João Ferreira Passos, o Bagaço, funcionário aposentado da Ford em São Bernardo e ex-diretor do Sindicato dos Metalúrgicos. Mas ele conta que era difícil distingui-los dos operários. "Era um peão normal, um peão comum. Só que a empresa tinha todo o controle, quem entrava na fábrica com jornal..." A Volkswagen, segundo ele, abrigava um verdadeiro QG. "Eles almoçavam e jantavam lá dentro. A Ford era mais discreta."
Certa vez, os metalúrgicos conseguiram identificar um infiltrado. "Quando nós descobrimos, ele sumiu." Por saber que eram vigiados, em época de greve os sindicalistas deixavam de ir para casa dois dias antes, para não serem presos. E havia as chamadas "listas negras", com informações sobre militantes e ativistas. "Todo mundo (as empresas) sabia quem nós éramos. É por isso que tem de investigar."
Coordenadora, dentro da CNV, do grupo de trabalho que apura episódios sobre o movimento sindical, Rosa Cardoso afirmou que o golpe foi organizado com sustentação de setores civis, incluindo as empresas. E garantiu que isso será apurado. "Faremos isso, sim. O movimento sindical foi o principal responsável por abrir as portas da política para o povo", acrescentou Rosa, citando diversos períodos históricos do país, desde os anos 1930. "Foi a classe trabalhadora que ampliou a luta política no Estado Novo e que defendeu as reformas de base. E fez as lutas nos anos 70. Gostando menos ou mais do 'Lula lá', a verdade é que o Lula iconiza a participação da classe trabalhadora no poder."
O ex-presidente era esperado para participar do ato, mas não compareceu. Ontem pela manhã, ele passou por exames no Hospital Sírio-Libanês, em São Paulo, e os médicos informaram que seu estado de saúde é "excelente". Lula não foi, mas seu irmão José Ferreira da Silva, o Frei Chico, esteve lá até o final.
Djalma Bom, um dos presos durante 30 dias com Lula em 1980, durante uma intervenção no Sindicato dos Metalúrgicos, também testemunha a "eficiência" dos agentes que se passavam por trabalhadores. "Era bem infiltrado. A gente não percebia." Tanto que alguns ele foi reencontrar justamente em uma das idas à delegacia – mas aí já não eram mais colegas.
Outros companheiros de prisão no Dops, em 1980, e enquadrados na Lei de Segurança Nacional (LSN), também estiveram no ato e foram homenageados, como o ex-prefeito de Diadema Gilson Menezes e o presidente do PSTU, José Maria de Almeida, líder da Central Sindical e Popular (CSP)-Conlutas. Em 12 de maio de 1978, Gilson liderou a emblemática greve da Scania, em São Bernardo.
Também da direção da CSP-Conlutas e secretário-geral do Sindicato dos Metalúrgicos de São José dos Campos, Luiz Carlos Prates, o Mancha, quer que as empresas cheguem "ao banco dos réus". E afirma que elas continuam no país tendo lucro e remetendo divisas para o exterior. "É uma tarefa inacabada", comentou, referindo-se à necessidade de punições. Ele acrescenta que o evento não é só nostalgia: a lei de segurança ainda é usada para coibir manifestações, há tortura nas delegacias e a Polícia Militar segue usando de violência.
Um dos itens da "Carta das Centrais" é justamente a "desmilitarização" da polícia. O documento inclui ainda a revogação da LSN, a extinção da Justiça Militar e uma nova interpretação da Lei de Anistia, "que seja compatível com a proteçᆪo e defesa dos direitos humanos". Assinam o texto CGTB, CSB, CSP-Conlutas, CTB, CUT, Força, Intersindical (duas), Nova Central e UGT.
Conforme anunciado, no encerramento houve a execução de A Internacional, em uma versão em castelhano.