O coronavírus é também uma crise urbana, que escancara contradições e aprofunda desigualdades nas cidades. É o que aponta o livro “Covid-19 e a crise urbana”, escrito por 12 pesquisadores da Universidade de São Paulo (USP) e publicado pela instituição.
A obra é organizada pela professora Ana Fani Alessandri Carlos, do Programa de Pós-Graduação em Geografia Humana da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas (FFLCH), e está disponível online.
Segundo ela, a pandemia colocou os privilégios de moradores de zonas centrais ainda mais distantes das fragilidades sociais da população periférica. Para Ana, na ausência de políticas públicas efetivas, enfrentamos a era em que, escancaradamente, as relações humanas são trocadas por lucro rápido.
Em entrevista ao Brasil de Fato, a professora fala sobre o contexto histórico da formação das cidades como um objeto da ação social humana, as restrições estruturais impostas à periferia durante a pandemia, os estragos provocados por uma economia neoliberal e quais as possíveis soluções descritas no livro.
Leia a seguir:
Brasil de Fato: Professora, a primeira frase do livro é uma pergunta: “Em meio a tantas publicações, por que mais um livro?”. Por quê? Do que a publicação se trata, em linhas gerais?
Ana Fani Alessandri Carlos: O que nós estamos vendo na televisão, nas mídias, de forma geral, é o fato de que a pandemia vai aumentando os dados, os gráficos e a proposta do livro é: o que está por trás desses mapas, dados e gráficos que nós temos o tempo todo?
A ideia é que, para além dos mapas, dos dados, das ocorrências de infectados, curados, dos mortos, existe uma vida cotidiana que se realiza na cidade. Neste momento, a pandemia vem agravar uma crise que é urbana e que ilumina as contradições entre o centro e a periferia, o que faz com que a pandemia seja vivida de forma diferenciada. Por trás disso, tem um sentido da cidade como uma produção social, desigual, que hoje se encontra em crise.
A ideia de escrever o livro é ir além das representações da pandemia. A pandemia não é só um problema de saúde, um problema sanitário. Ela é, principalmente, um problema social.
Quais são as principais desigualdades entre as populações rica e pobre que vocês conseguiram constatar?
Essa desigualdade repousa na concentração de renda e de riqueza. Essa concentração de renda e de riqueza vem acompanhada de uma concentração de poder, o que diferencia políticas públicas para as áreas centrais da cidade e para a periferia.
Portanto, enquanto nas áreas centrais a população de alta renda tem direito ao isolamento, o direito ao home office, o direito à despensa cheia, as áreas periféricas são áreas onde quase não sai água das torneiras, onde o esgoto é deficitário e são pessoas que precisam sair para trabalhar.
O que nós percebemos é que nessa periferia não existe o direito ao isolamento, aos direitos básicos que permitam que a pandemia seja vivida da mesma forma. Enquanto nas áreas de alta renda as pessoas podem ter hospitais privados, nas áreas de baixa renda as pessoas estão sujeitas aos hospitais públicos, onde a taxa de morte provocada pela covid-19 é maior.
A crise urbana que escancara todos esses problemas e diferenças é uma construção histórica, de longo prazo, ou é algo que se aprofunda nos últimos anos, especialmente no Brasil?
O Brasil é um país periférico. O processo de urbanização brasileiro se faz com dependência dos países centrais. Então, você tem um lado que é histórico, que é fundante do processo de urbanização contemporânea, e você tem o que é deste momento.
O que nós temos, por exemplo, neste momento, é um agravamento da concentração de renda no Brasil. E a cidade de São Paulo, que é o foco do meu trabalho, tem uma concentração de renda que, nos últimos anos, só veio se agravar. A concentração de renda está aumentando, as políticas públicas só vêm agravá-las.
Por isso, nós fizemos questão de, no nosso livro, tratar a covid-19 como uma crise social urbana, porque ela tem cara e rosto. Ela se representa em gráficos, em rostos, mas, por trás desses rostos, existe uma sociedade, a desigualdade vivida socialmente, existe uma vida de privação e de ausência de direitos.
A desigualdade é um problema estrutural, histórico, que se aprofunda cada vez mais. Existe alguma forma de sairmos disso? Se existe, quais seriam os mecanismos?
Os mecanismos são mudar a infraestrutura, diretamente. O espaço é importante. A cidade como materialidade espacial é importante para que as políticas públicas, imediatamente, interfiram, de um lado, na construção da cidade e, de outro lado, por exemplo, para que um auxílio emergencial seja maior em quantidade e em tempo.
As políticas públicas precisam investir no sentido de que o dinheiro precisa ser canalizado para resolver essa situação, ao invés do dinheiro ser canalizado, por exemplo, para proteger bancos. A ideia é que a infraestrutura precisa ser imediatamente criada.
O capítulo que a senhora escreve no livro, especificamente, fala de revolução. A pandemia é (ou deve ser) uma revolução no conceito de cidade que temos hoje?
Sim. No caso da vida cotidiana, ela [a cidade]se modifica radicalmente. No período desta pandemia, estamos vendo uma população que está em casa. Estamos vendo o home office como uma possibilidade que agora está parecendo com uma realidade.
O que acontece com o home office? Ele faz com que o tempo do trabalho, que normalmente invade a vida, agora tome completamente a vida cotidiana, porque o trabalho entrou em casa. As relações sociais se transformam, as relações familiares se transformam radicalmente, porque agora elas estão completamente subsumidas a esse mundo do trabalho.
Por outro lado, temos uma precarização, cada vez maior, do trabalho. O que nós assistimos com o problema dos entregadores e as lutas que se invisibilizam fazem parte dessa revolução do cotidiano. Cada vez mais, se compra um serviço enquanto se está em casa. Há toda uma rede de distribuição, de todos os tipos de objetos, e que está permitindo que o isolamento aconteça.
A cidade é o lugar da vida, da reunião, dos encontros. Hoje, os espaços públicos se esvaziam. Neste momento, há uma revolução no modo pelo qual nós nos relacionamos com o outro. Ela [a relação]está cada vez mais atravessada pela mídia, e essa mídia, atravessando tudo, está fazendo a cabeça das pessoas ainda mais. Está interferindo no modo como as pessoas estão vivendo, estão percebendo o mundo lá fora.
Vocês citam no livro que a cidade é um objeto da ação social que transforma a natureza em uma obra civilizatória. Qual é a diferença entre transformar e destruir a natureza, que é algo que temos visto muito?
Se nós voltamos para a história e localizamos onde a cidade surge, a cidade surge como uma segunda natureza. O que significa dizer que o homem se relaciona com a natureza na sua origem e a transforma em algo que lhe é próprio.
A cidade surge, ao longo da história, como um momento de transformação dessa sociedade em algo humano. Essa ação humana não destrói a natureza. Ela transforma a natureza e vive com a natureza.
O problema é que, no modo de produção capitalista, o que nós temos é que a relação econômica em busca de lucros que se faz de forma cada vez mais rápida destrói a natureza. As atividades que destroem a natureza são as atividades econômicas que buscam lucros rápidos.
O debate, então, é: como preservar a natureza ao mesmo tempo em que se preserva a vida? O ser humano não destrói. O que destrói é essa busca incessante, rápida, em torno de crescimento econômico rápido.
Um conceito presente no livro é o de “necrogeografia”. Do que se trata e de que forma que ele se aplica às cidades?
A necrogeografia se refere ao fato de que as políticas públicas acabam sendo políticas que levam ao sacrifício de um contingente da população.
O que nós estamos discutindo no Brasil é: as políticas públicas, principalmente as federais, estão atacando a pandemia de que modo? O que estamos vendo é que o modo pelo qual as políticas públicas federais estão orientando ou não orientando a superação da pandemia tem causado um imenso sacrifício da vida dos trabalhadores pobres, que precisam sair de casa, que precisam trabalhar, e que estão mais sujeitos a estarem em contato com o vírus e ficarem doentes.
O que está acontecendo é que há um trabalho informal, ilegal, precário, ‘uberizado’, que dizima essa população. As políticas não se voltam para salvar vidas, mas para salvar economia.
É isso que é a necrodemografia: a demografia da morte, que orienta as políticas públicas de um Estado que sacrifica a vida de trabalhadores pobres porque está do lado das políticas neoliberais de crescimento.
O que a pandemia nos deixa de lição? Qual é o primeiro passo para que consigamos fazer a transformação das cidades que é proposta no livro?
O que a pandemia nos deixa é a construção de uma rede de solidariedade. Isso é muito importante. A pandemia, principalmente no caso brasileiro, está escancarando a importância da ciência, a importância do conhecimento, para transformar o mundo num momento em que a gente vive um anti-intelectualismo e uma ignorância total.
Para resolver o aqui e agora, nós precisamos que as políticas de auxílio emergencial continuem e que a população da periferia seja assistida. É necessário que o Estado se volte para as periferias, para minimizar os problemas que eles estão passando. Só assim que nós vamos conseguir diminuir o número de mortes.
Fonte: Brasil de Fato