O avanço da liberalização ampla do mercado de trabalho pelo capitalismo digital cria uma massa de mão de obra ultra flexível, cada vez mais exposta à ocupação precária e desprotegida
por Marcio Pochmann
Desde o começo de 2014 quando chegou ao Brasil – inicialmente no Rio de Janeiro e posteriormente a diversas cidades –, o aplicativo de celular que conecta o indivíduo ao motorista particular chamado Uber contaminou o debate ora em curso no mundo a respeito do capitalismo digital. Isto é, a profusão de novas formas de acumulação de capital assentadas nas tecnologias digitais acompanhada dos discursos legitimadores e apoiadores desta esfera de expansão econômica.
Na sequência, o trabalho submetido às tecnologias digitais de informação e comunicação ganha corpo cada vez mais visível, colocando em xeque as formas conhecidas de regulação e proteção dos que dependem do trabalho para viver. No caso do Uber, cujo aplicativo para celular foi lançado em 2010 na cidade estadunidense de São Francisco por empresa fundada um ano antes e que seis anos depois apresentou valor de mercado de US$ 51 bilhões e ainda, apoio de gigantes como Microsoft, Google e Goldman Sachs, o trabalho organizado diretamente atingido é o do taxista tradicional.
Isso porque o Uber organiza cadastro livre de motoristas colaboradores que devem seguir as regras de segurança estabelecidas e oferecer transporte a passageiros interessados sem cobrar diretamente, pois recebe pela carona remunerada diretamente da empresa. Por não ser identificado como função subordinada, o trabalho encontra-se remunerado somente quando exercido, livre de encargos e proteção social e trabalhista, mesmo que o motorista deva estar disponível a todo o tempo para receber chamadas.
Neste mesmo sentido, têm expressão os "contratos de trabalho de zero horas" voltados ao emprego do trabalho disponível a partir de cadastramento livre de mão de obra excedente, sem nenhum benefício de proteção social e trabalhista. Somente no Reino Unido estima-se que atualmente cerca de 1 milhão de trabalhadores estejam submetidas a essas condições, sobretudo nas redes de alimentação como Sports Direct, Boots, Mc Donald’s, Subway, entre outras.
Outra novidade em expansão tem sido a forma de gerenciamento de contratos entre profissionais e empresas pela empresa Amazon Jobs. A partir da inscrição em cadastro digital e pagamento de taxa de anúncio, a oferta de trabalho é exposta para as empresas cadastradas no mundo.
Este avanço considerável na liberalização ampla do mercado de trabalho pelo capitalismo digital gera mão de obra ultra flexível, cada vez mais exposta à ocupação precária e desprotegida. Segundo registros do instituto inglês especializado em recursos humanos, Chartered Institute of Personnel and Development, a jornada de trabalho nestas novas formas de acumulação de capital assentadas nas tecnologias digitais chega a 70 horas semanais, com o trabalhador devendo estar disponível 24 horas por dia.
Estudiosos e sindicatos têm alertado para a formação de uma nova classe precária de trabalhadores mal pagos e levados a estar à disposição plena dos demandantes de trabalho flexível. Esta situação, contudo, não representa uma novidade, salvo a combinação do novo com o velho.
No século 19, a presença do trabalho flexível era a norma. Essa forma de organização do trabalho, existente desde a Idade Média, vigorou em plena expansão da revolução industrial a partir do século 18, quando o empresário oferecia as ferramentas necessárias para a produção de bens a trabalhadores disponíveis.
Mediante a encomenda de mercadorias pelo empresário, o trabalho era realizado em locais distintos, por meio de grande competição entre a mão de obra disponível e sem qualquer proteção ou organização sindical. Será que nos dias de hoje, poder-se-ia dizer que o trabalho encontra-se diante da reinvenção do século 19?