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13 de Julho de 2015 às 23:00

14/07/2015 - Boff diz que 'projeto econômico não é adequado ao social'


Crédito: CLÁUDIO SANTOS/INSTITUTO LULA

Escritor reforça apelo do papa pela preservação do planeta, "nossa casa comum", e alerta para risco de perda de conquistas sociais no Brasil. Para ele, cultura da casa-grande é "uma estrutura mental"

por Vitor Nuzzi, da RBA

São Paulo – "O projeto econômico não é adequado ao projeto social. Há uma desigualdade muito grande", diz o escritor, teólogo e professor Leonardo Boff sobre o atual momento brasileiro, externando preocupação com os limites do crescimento via consumo e pela falta de articulação "permanente, orgânica", do governo com os movimentos sociais. Boff defendeu uma "volta às bases" por parte de quem está hoje no poder, que por natureza é excludente.

"Onde há poder, não há amor", afirma Boff, que também reflete sobre a perspectiva de sobrevivência da humanidade. "Não bastam reformas. Tem de ser um novo começo. Sem isso, não vamos salvar a vida no planeta." Para ele, o mundo vive um "antroproceno", em que a grande ameaça é o próprio ser humano. "Estamos com uma roleta-russa voltada para nossos filhos e netos, e ela não vai errar." Há algumas décadas a questão ecológica passou a ser uma preocupação central do pensamento de Boff.

Em uma exposição de aproximadamente duas horas na manhã de hoje (13), na sede do Sindicato dos Bancários de São Paulo, Osasco e Região, para um público basicamente de religiosos, o teólogo retomou o conceito de globalização e elogiou a encíclica Laudato si', publicada em maio – o termo se origina de São Francisco de Assis: Laudato si', mi' Signore (Louvado sejas, meu Senhor). Boff se disse feliz pelo fato de o papa Francisco ter assumido um novo paradigma, dando "centralidade à terra e à vida", além de criticar o sistema responsável pela "destruição sistemática" da vida na Terra. Ao citar o economista e escritor francês Jacques Attali, o escritor falou sobre a urgência de uma governança global.

Ele mencionou as negociações sobre a dívida grega e atacou a política econômica capitaneada pela Alemanha, em um processo que pode atingir três gerações gregas. "Estão literalmente matando o povo. Estão sacrificando o filho, o neto e o bisneto. Colocar o dinheiro acima das pessoas é uma crueldade sem nome."

Paradigma

No Brasil, Boff defendeu o projeto que levou o PT ao governo ("Para que os humildes, os pequenos, possam ter acesso à vida") e o que chamou de transição de paradigma, de um Estado "neoliberal, privatista" para um "republicano". E criticou o partido também, ao afirmar que essa transição, incompleta, tornou-se mais problemática pela opção do governo de enveredar por um caminho mais curto, da coalizão. "Acho que o PT entrou nesse vício do poder", diz o escritor. "Acho que temos de voltar às nossas bases", afirma, pedindo um partido "que seja da inclusão social, dos direitos e de um novo tipo de democracia".

Ele manifestou "preocupação" com a possibilidade de o país perder recentes conquistas sociais, que ele chamou de "revolução", no sentido de suprirem demandas nunca atendidas do ponto de vista histórico. Considerou a retirada de dezenas de milhões de pessoas da linha da pobreza um fato de magnitude histórica. Mas na "transição de paradigma", identificou problemas estruturais. Um se refere ao que considera pouca representatividade do Congresso, no que chama de "democracia de clientela, de baixa intensividade". Segundo Boff, aproximadamente 70% dos deputados foram eleitos por um conjunto de dez empresas. "Eles não estão representando o povo brasileiro."

Além disso, acrescenta, o Brasil sofre com uma economia "com pouca sustentabilidade, o que enfraquece muito o Estado". Cita o economista Pochmann, ao afirmar que 5 mil famílias concentram 43% do PIB. "Nesse cenário, como fazer a transição?", questiona, adicionando uma crítica ao governo pela manutenção da "máquina neoliberal", a fim de acalmar o chamado mercado. Por isso, para Boff, a chamada "Carta aos Brasileiros", divulgada pela coalizão que levou Luiz Inácio Lula da Silva ao poder em 2002, poderia ser interpretada como uma "carta aos banqueiros".

Ele lamentou a mudança do Fome Zero para o Bolsa Família – por pressão de prefeitos, segundo Boff. "Acho que foi um erro fatal", diz, acreditando que o programa se torna, em alguma medida, instrumento de manipulação. Ainda na área econômica, a dívida pública "herdada de muitos governos" obriga a uma drástica restrição de gastos do governo. E o país passou por um processo de crescimento via consumo "que hoje estamos percebendo ser insuficiente", define, voltando a falar na "transição incompleta" e apontando a incapacidade de realizar qualquer tipo de reforma. "Estamos encalacrados nisso."

Mas Boff também critica o papel desempenhado pela oposição. Ao falar em "sangrar o PT", por exemplo, o ex-presidente Fernando Henrique Cardoso mostra perversidade e adota "a linguagem dos jagunços". "Eles não estão interessados em governar, porque a oposição governa junto com o poder estabelecido. É derrubar a Dilma e destroçar o PT, difamar, dizimar, a figura de Lula". O objetivo incluiria apontar o Estado como inepto, difamar a política e criar insatisfação generalizada, desestabilizando governos não alinhados com o pensamento econômico predominante, representado pelos Estados Unidos.

Lógica do poder

Combater essa lógica do poder, excludente, implica em "certa ruptura democrática", com o estabelecimento de uma Constituinte e uma nova proposta econômica – com uma nova equipe. "Levy (o ministro da Fazenda, Joaquim Levy) representa o capitalismo internacional", diz. Ele afirma ser importante também reforçar a aliança com a China.

Para o teólogo, de 76 anos – e que há exatos 30 sofreu a imposição de um ano de silêncio obsequioso, no contexto da teologia da libertação –, o papa Francisco, em sua recente fala aos movimento sociais em Santa Cruz de la Sierra, na Bolívia, deu algumas indicações de caminhos. Ele acredita que é momento de, mais que ocupar espaços, provocar processos de discussão sobre que país e que sociedade o Brasil quer, voltar a criar grupos de reflexão, usando como instrumentos a compreensão e a tolerância. "A casa-grande está internalizada. Não é um processo social, mas uma estrutura mental." Assim, não basta discutir e defender os chamados três Ts (terra, teto e trabalho), mas assegurar a estrutura adequada para que tudo funcione, sempre considerando a dimensão humana. Mais adiante, citaria o educador Paulo Freire: "Nenhuma solução para os pobres funciona se os pobres não forem incluídos".

Boff identifica três desafios, válidos também para o PT. "A economia tem de estar a serviço do povo e não do dinheiro. Tem de servir à vida e não ao mercado", afirma, reafirmando o conceito de "casa comum" destacado na encíclica papal. "Temos de garantir um planeta em que vale a pena viver com alegria."

Outro desafio é geopolítico. Para Boff, é preciso "rejeitar o neocolonialismo que querem impor à América Latina". E rejeitar também "as medidas de austeridade que sempre apertam a cintura dos trabalhadores e dos povos". Por fim, "defender a mãe Terra", que está sendo devastada. "O futuro não está nas mãos dos poderosos e não vem de cima", diz, voltando a falar da Grécia e da globalização, ao manifestar esperança de que o episódio daquele país possa fazer surgir uma "era dos povos" no lugar da "era das nações", povos "que não aceitam mais as formas de dominação".

Como disse o papa no encontro com os movimentos populares, na Bolívia: "O futuro da humanidade não está unicamente nas mãos dos grandes dirigentes, das grandes potências e das elites. Está fundamentalmente nas mãos dos povos, na sua capacidade de se organizarem e também nas suas mãos que regem, com humildade e convicção, este processo de mudança". Boff citou ainda um trecho quase ao final do discurso, proferido em 9 de julho: "Nenhuma família sem teto, nenhum camponês sem terra, nenhum trabalhador sem direitos, nenhum povo sem soberania, nenhuma pessoa sem dignidade, nenhuma criança sem infância, nenhum jovem sem possibilidades, nenhum idoso sem uma veneranda velhice".

Ele também espera pela retomada da bandeira da ética. Acredita que isso se resgata, mas é preciso ver "o rosto sofredor" nas pessoas. "Se a gente não se comove, não muda a ética." 


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