RBA
Eduardo Maretti
São Paulo – “Os governos devem considerar aumentar impostos progressivos sobre indivíduos mais afluentes e aqueles relativamente menos afetados pela crise. Incluindo aumento de taxas para faixas de renda mais altas, propriedades de luxo, ganhos de capital e fortunas. Bem como mudanças na tributação corporativa para garantir que empresas paguem impostos proporcionais.” A recomendação não é de um economista do campo progressista. É do Fundo Monetário Internacional (FMI), a respeito da crise da economia mundial, no relatório World Economic Outlook, da semana passada, em que a Europa assiste à reincidência da pandemia.
O organismo multilateral diz mais. “As perdas persistentes de produção implicam um grande revés para os padrões de vida, em relação ao que era esperado antes da pandemia (em termos de desempenho da economia). Não apenas a incidência de casos de pobreza extrema aumentou pela primeira vez em mais de duas décadas, mas a desigualdade deve crescer, porque a crise afetou desproporcionalmente mulheres, trabalhadores informais e aqueles com baixo nível de escolaridade”, diz o FMI.
Segundo o relatório, as medidas de combate à covid-19, em termos fiscais, chegavam a US$ 11,7 trilhões (R$ 65 trilhões) no planeta, até 11 de setembro. Esse volume estaria equivalente a 12% do PIB global. No caso da economia Brasil, o fundo estima que a dívida bruta deve superar 100% do PIB ainda em 2020, ainda nem sequer superada a pandemia.
Não só o FMI, mas o Banco Mundial e o G20 alertaram para o endividamento crescente de países emergentes. E também para a “desigualdade terrível” que a pandemia de coronavírus pode fomentar. Algumas pessoas podem se perguntar: o mundo virou de ponta cabeça?
Para o economista Guilherme Mello, da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), o mundo não virou de ponta cabeça. Mas, como ele observa, há um movimento de representantes dos países desenvolvidos no sentido de propor medidas de “legitimação do sistema”, diante da ameaça da crise.
O perigo ao próprio funcionamento do sistema econômico mundial não é mais, como décadas atrás, o antigo bloco socialista, ou comunista, representado pela União Soviética. Diante da crise potencializada pela pandemia, o risco hoje é ocorrer uma “deslegitimação” do funcionamento das estruturas de economia, abrindo espaço para o surgimento de lideranças populistas, de extrema direita, como Donald Trump, nos Estados Unidos, ou Jair Bolsonaro, no Brasil.
Além disso, acrescenta Guilherme Mello, o sistema patina. O crescimento é baixo, e tem ainda a transição de hegemonia dos Estados Unidos para a China, com sua economia centralizada. Para o analista, o Ocidente “está perdendo a batalha contra outro modelo de sociedade, o asiático”. Diante do cenário, a necessidade de “legitimar o sistema” é urgente. Mas isso não é possível com a desigualdade crescente que retira a capacidade de crescimento dos países.
Nesse quadro, os motores do crescimento, como consumo interno, ficam bloqueados. “O problema de legitimidade e o de acumulação de riqueza se somam. Então é preciso distribuir renda para legitimar e estimular novamente o crescimento.”
Nesse contexto, cabeças influentes, como o economista Paul Krugman, vêm defendendo ideias progressistas. “Estou disposto a pagar mais impostos para ter uma sociedade mais saudável”, disse o norte-americano em entrevista ao El Paísem janeiro.
“Não é incomum em momentos de grave crise na dinâmica do sistema que economistas dos países centrais se preocupem com a recuperação dessa dinâmica”, diz Mello. Ele cita a década de 1930, por exemplo. Após a crise de 1929, quando o presidente Franklin Roosevelt adotou medidas de emergência para recuperar a economia dos EUA, entre as quais a cobrança de imposto sobre capital improdutivo.
Após a Segunda Guerra, o chamado Estado do bem-estar social, na Europa devastada pelo conflito mundial, cobrou pesados impostos dos mais ricos para financiar a recuperação da economia do Velho Mundo.
Para Mello, apesar de manifestações de organismos multilaterais sobre economia no contexto da pandemia, não há uma orientação consensual de politica para países em desenvolvimento. Na década de 1990, lembra, a orientação se traduziu no Consenso de Washington, que consolidou o neoliberalismo para esses países. Nas décadas de 50 e 60, a visão mais desenvolvimentista se consolidou pela Cepal, da ONU. “Agora, ainda não está claro qual será uma nova visão para países como o Brasil.”
Seja como for, o ministro da Economia, Paulo Guedes, segue firme com sua agenda. O professor da Unicamp classifica o ministro como uma “caricatura setentista friedmaniana no debate (em alusão ao economista Milton Friedman, teórico do liberalismo)”. Paulo Guedes “é apenas um nome” da corrente que defende o dualismo Estado ruim x Estado bom.
Outros são Marcos Lisboa, Samuel Pessoa e Mansueto Almeida, ex-secretário do Tesouro Nacional. Nomes cujo pensamento, lembra Mello, são reproduzidos à exaustão pela chamada mídia tradicional, que continua apoiando a agenda de Paulo Guedes.