Brasil de Fato
Daniel Giovanaz
Das 24 coordenações regionais da Fundação Nacional do Índio (Funai) na Amazônia Legal, 14 são lideradas por militares. Os cargos são ocupados por quatro capitães, quatro tenentes, um tenente-coronel, um paraquedista e quatro fuzileiros navais – um deles da reserva.
A proporção de militares na chefia das coordenações é de 58,3% nos nove estados da Amazônia Legal. Nas demais regiões do país, a incidência é de 26,7%.
“Além de ser estratégica no sentido militar, porque tem muitos interesses internacionais, a Amazônia Legal também é atrativa para exploração dos recursos de forma indevida, em conluio com as grandes corporações, principalmente na extração de madeira, na mineração e no agronegócio”, analisa Dinaman Tuxá, coordenador executivo da Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (Apib).
O líder indígena explica qual seria, na avaliação da Apib, o perfil ideal para chefiar as 39 coordenações regionais da Funai. “É um cargo que atende na ponta, que tem relação direta com os indígenas. E o perfil mais adequado são agentes indigenistas, sociólogos, antropólogos, pessoas que conhecem a causa, têm sensibilidade e vão trabalhar para que se cumpra a missão institucional da Funai, que é proteção e promoção dos direitos dos povos indígenas”.
Secretário executivo do Conselho Indigenista Missionário (Cimi), Antônio Eduardo Cerqueira de Oliveira também vê com preocupação a presença crescente de militares no órgão.
“Os militares têm a concepção de que o indígena não contribui para a soberania do país. Eles são contra até a utilização do termo povos indígenas, e também são contra a autonomia dos povos sobre a gestão e demarcação dos seus territórios, buscando a ‘integração’ dos indígenas à sociedade nacional”, avalia.
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A Instrução Normativa nº 9, de abril de 2020, traduz o olhar dos militares sobre o tema, segundo Oliveira, reduzindo a Funai a uma instância de certificação de imóveis para posseiros, grileiros e loteadores de terras indígenas.
Para Dinaman Tuxá, os desafios enfrentados sob o governo Bolsonaro remetem a um dos períodos mais desfavoráveis para a efetivação dos direitos indígenas no Brasil: a ditadura civil-militar (1964-1985). A Comissão Nacional da Verdade (CNV) aponta que ao menos 8,3 mil indígenas foram mortos por ações do regime, que também tinha a “integração” como uma de suas bandeiras.
“A militarização da estrutura da Funai que vemos hoje reaviva a ideologia da ditadura, que foi muito danosa e resultou na entrega das nossas terras ao latifúndio”, lembra. “Além disso, ela é prejudicial para o andamento dos processos de demarcação e implementação de políticas públicas, por que eles não são agentes indigenistas e desconhecem como funciona a organização das comunidades.”
O primeiro levantamento sobre a presença de militares nas coordenadorias regionais da Funai sob governo Bolsonaro foi realizado em setembro de 2020 pelo portal Sul21. À época, eram 17 nos postos de comando.
De lá para cá, houve mudanças pontuais. A regional de Passo Fundo (RS), que estava sem coordenador em 2020, agora é chefiada pelo coronel da reserva Aécio Galiza Magalhães – que estava exonerado, mas foi reconduzido ao cargo.
Em Campo Grande (MS), o capitão reformado José Magalhães Filho, que ocupava a função à época do levantamento do Sul21, foi exonerado. A regional está sem coordenador no momento.
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Outra atualização em relação ao balanço anterior é a presença do subtenente da reserva Roberto Cortez de Sousa na regional Litoral Sudeste, em Itanhaém (SP).
Azelene Inácio, da regional Interior Sul, em Chapecó (SC), é a única indígena a ocupar uma das 39 coordenações da Funai.
O secretário executivo do Cimi explica, na prática, o que muda com militares no controle das coordenações regionais na Amazônia Legal.
“Eles atuam para abrir as terras indígenas para o capital, para exploração desses territórios, e têm uma atuação decisiva no sentido de proteger as empresas mineradoras, o garimpo, fazendo lobby junto às comunidades indígenas para que haja essa permissão”, descreve.
Oliveira chama atenção para a ameaça crescente aos indígenas isolados do Vale do Javari (AM) e para o assédio de ruralistas aos povos Xavante e Parecí no Mato Grosso, para tentar expandir o cultivo de soja em terras indígenas.
“O que nos preocupa mais é a questão da Amazônia Legal mesmo, porque lá a presença de militares é maior e, com certeza, este ano eles vão intensificar esse projeto de liberação dos territórios, principalmente com a aprovação do PL [Projeto de Lei] 191”, completa.
O projeto a que ele se refere, é de autoria do Poder Executivo e visa flexibilizar as regras para mineração em terras indígenas.
Na interpretação do secretário executivo do Cimi, os militares brasileiros já demonstraram que não concordam com a Convenção nº 169 da Organização do Trabalho (OIT). Esse documento afirma que “os povos interessados deverão ser consultados sempre que for considerada sua capacidade para alienarem suas terras ou transmitirem de outra forma os seus direitos sobre essas terras para fora de sua comunidade.”
O Brasil de Fato questionou a Funai sobre os motivos da militarização das coordenações regionais na Amazônia Legal. Não houve retorno até o fechamento deste texto.
Um dos argumentos mais frequentes é que as Forças Militares teriam mais condição de chegar a áreas de difícil acesso na floresta.
“Isso é um pretexto [tem que ser militares], porque os civis também têm condições de chegar aonde os militares chegam, desde que estejam preparados”, adverte o secretário executivo do Cimi. “Além disso, os povos isolados da Amazônia não precisam que os não indígenas cheguem lá. O que eles precisam é de proteção para que, justamente, não se chegue a esses territórios”, finaliza.