A onda conservadora orquestrada pela extrema direita tem promovido, entre suas consequências mais repugnantes, o aprofundamento do racismo estrutural na sociedade brasileira. Isso ocorre ao mesmo tempo em que se torna cada vez mais comum a defesa do nazismo, da liberação do comércio desenfreado de armas e da ocupação de áreas indígenas pelo garimpo, entre outros discursos do tipo. O objetivo das forças reacionárias, que hoje se encontram penduradas no poder, é sufocar o debate e as ações, em favor da classe trabalhadora e de minorias, que começaram a se organizar no movimento de abertura política nos anos 1970, ganharam corpo no processo de redemocratização da década de 1980 e estavam se consolidando com os governos populares iniciados em 2002.
Nos últimos tempos, a sociedade brasileira tem sido golpeada com episódios os mais violentos contra a comunidade negra. Entre muitos crimes, tomaram a grande imprensa, por exemplo, a morte cruel de João Alberto Silveira Freitas, de 40 anos, em Porto Alegre em novembro de 2020, enquanto fazia compra em uma unidade do Carrefour; a abordagem violenta a um garotinho de 10 anos em uma loja da rede de supermercados Assaí, em Jacarepaguá, no Rio de Janeiro, em outubro de 2019, quando ele recolocava um carrinho de compras na entrada do estabelecimento; e o assassinato brutal congolês Moïse Kabagambe, de 24 anos, em uma praia carioca, no mês passado.
Este último caso ganhou, na última sexta-feira (11), tom ainda mais sádico, quando o presidente da Fundação Palmares, Sérgio Camargo, pelas redes sociais, não apenas minimizou o crime, como também atacou sem qualquer fundamento a memória do jovem refugiado no Brasil. O presidente da Fundação, que tem a função institucional de atuar contra o racismo, chamou a vítima de “vagabundo” e insinuou que ele seria um criminoso, como seus algozes. A resposta imediata, à altura e em boa hora, veio do procurador da Comissão de Direitos Humanos da Ordem dos Advogados do Brasil do Rio de Janeiro, Rodrigo Mondego, que atua em nome da instituição junto à família de Moïse. “Esse VAGABUNDO vai responder por essa mentira absurda que está falando. A família do Moïse está estarrecida com essa fala criminosa desse sujeito. Já estamos estudando as medidas cabíveis”, postou o advogado.
O presidente da mesma comissão da OAB-RJ, Álvaro Quintão, também se manifestou. “Quero registrar a minha profunda decepção com esse senhor que preside a Fundação Palmares e que envergonha a fundação desde que surgiu. Esse é só mais um comentário vergonhoso. Depois de Moïse ser espancado até a morte, ele quer espancar a história e memória dele”, postou Quintão.
Para Almir Aguiar, secretário de Combate ao Racismo da Confederação Nacional dos Trabalhadores do Ramo Financeiro (Contraf-CUT), “Sérgio Camargo, preside uma instituição que deveria preservar a cultura negra e incentivar a luta do movimento, mas na verdade ele ocupa a função de capitão do mato, um negro submetido às ordens do seu patrão genocida, racista, sexista e homofóbico. Ele não respeita a dor da família do Moïse, que foi assassinado brutalmente. A justiça precisa condenar esse sujeito abominável. Mas o movimento negro está fortalecido e vamos enfrentar com mais vigor esse racismo estrutural”.
Indenização a criança
A agressão ocorrida na loja do Assaí teve desdobramento relevante na quarta-feira passada (9), com a confirmação de decisão judicial que determinou indenização de R$ 30 mil à família do menino, proferida pelo Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro. Na sentença, a desembargadora Andréa Pachá, relatora do processo, afirma que, para combater o racismo, “essa chaga que nos envergonha e nos diminui em humanidade, precisamos, antes de mais nada, deixá-la visível e adotar, institucionalmente, práticas antirracistas para reduzir os danos, respeitando a intensidade da dor que o preconceito produz”.
“A indenização corrige, em parte, as atitudes repugnáveis tanto da segurança, quanto da administração do supermercado. A Lei 7.716 de 1989 tipifica os crimes de racismo, mas é fato que no Brasil racistas não são presos. Isso precisa mudar, nessa conjuntura de ódio esse tipo de crime vem se proliferando e esses criminosos precisam ser punidos, a indenização é importante, embora o valor devesse ser dez vezes mais, a prisão está na lei. Mas estaremos sempre numa luta ferrenha por uma sociedade justa, igualitária e sem racismo”, afirma Almir Aguiar.
Conforme Pachá, a ação no Assaí mostra a “naturalização” do supermercado com o preconceito, assim como “o descompromisso com o respeito que se deve ter com uma criança de 10 anos de idade”. Como afirma ela em seu voto, as provas constantes do processo revelam a situação degradante vivida pela criança, “não se tendo notícias de abordagem similar envolvendo uma criança branca, em condições similares” e que, por meio de seus seguranças, a empresa “atuou em evidente violação das regras mais básicas de convivência social, abusando de direito e causando danos irreparáveis, na perspectiva humana”.
Para a magistrada, a defesa do supermercado, baseada na alegação de que na loja há incidência de furtos praticados por adolescentes, é infundada, pois “tal fato não autoriza quem quer que seja a abordar agressiva e violentamente os menores de idade, violando não só o princípio da presunção de inocência, como a garantia do devido processo legal. Impossível decidir sobre o conflito trazido nos autos sem registrar, de forma objetiva, a tentativa de normalizar o racismo, como se fosse possível determinar quem são ‘os suspeitos de sempre’, a partir da cor do corpo”.
Veja aqui a íntegra do voto da desembargadora Andréa Pachá.
Fonte: Contraf-CUT