Muito se fala que o racismo não é um preconceito somente, mas algo que estrutura a sociedade e as relações de poder. Mas, ainda hoje o racismo estrutural, muitas vezes, é confundido com racismo institucional, levantando questionamentos de como ele funciona e de como atinge a vida das pessoas.
Em um bate-papo com a filósofa Djamila Ribeiro sobre o tema, o professor de Direito e ministro dos Direitos Humanos, Silvio Almeida, afirma que “não existe racismo que não seja estrutural”.
Todo o racismo, segundo essa acepção, é estrutural porque o racismo não é um ato, o racismo é o processo em que as condições de organização da sociedade reproduzem a subalternidade de determinados grupos que são identificados racialmente.
“É estrutural [o racismo] porque estrutura todas as instituições”, pontuou o agora ministro, que é autor do livro “O que é racismo estrutural?”, da coleção Feminismos Plurais, coordenada por Djamila.
“[Racismo estrutural] não é só uma questão moral, não é uma questão jurídica, não é uma questão somente econômica”, continuou o ministro, lembrando que o racismo está em todas as estruturas da sociedade.
A importância da história para entender o conceito
Para entender as raízes do racismo estrutural no Brasil e como essa história começou a se perpetuar até os dias de hoje, é necessário voltar ao início do século XVI ao século XIX, onde instituiu-se a escravidão, marcada principalmente pela exploração forçada da mão de obra de negros e negras trazidos do continente africano, e que aqui foram transformados em escravos pelos europeus colonizadores.
Os três séculos de escravidão no Brasil, situação que só teve fim por conta da resistência dos negros escravizados, somado ao interesse econômico internacional, deixaram marcas profundas de desigualdade em todas as estruturas de poder. Disparidade que orienta e conduz, até os dias de hoje, as relações econômicas, sociais, culturais e institucionais do país.
No pós-abolição, em 1888, pessoas negras não tiveram acesso à terra, indenização ou reparo por tanto tempo de trabalho forçado. Muitos permaneceram nas fazendas em que trabalhavam em serviço pesado e informal. Foi a partir daí que se instalou a exclusão de pessoas negras dentro das instituições, na política, e em todos os espaços de poder.
A definição do que é racismo estrutural
Racismo estrutural é um conjunto de práticas discriminatórias, institucionais, históricas e culturais dentro de uma sociedade que frequentemente privilegia algumas raças em detrimento de outras.
O termo é usado para reforçar o fato de que há sociedades estruturadas no racismo, o que favorece pessoas brancas e desfavorece negros e indígenas.
Falar de racismo estrutural é lembrar das questões centrais que mantém esse processo longo de desigualdade entre brancos e negros e que se desdobram no genocídio de pessoas negras, no encarceramento em massa, na pobreza e na violência contra mulheres.
O racismo tem diversas maneiras de se manifestar, afirma a doutora em Educação pela Universidade de São Paulo (USP) Adriana Moreira, alertando que é necessário pensar em estratégias e instrumentos para combatê-lo.
Um exemplo que ela dá é o quesito cor. De acordo com a doutora, o sistema, que controla as matrículas e as informações das crianças nas cidades, foi implementado sem que nenhum funcionário da rede passasse pela formação para debater o quesito cor.
“Precisamos entender porque os meninos negros saem mais cedo da escola do que os garotos brancos, o que acontece no ambiente escolar, quais são as trajetórias desses meninos, porque que esses meninos são mais colocados numa trajetória de morte na adolescência do que os meninos brancos. São questões fundamentais, que quando a gente discute a estruturação dos processos, constrói a racionalização das instituições e das relações institucionais e interpessoais, ajuda a pensar em possibilidades de desfazer os processos”, argumenta Adriana.
Exemplos de racismo estrutural
A ausência de negros e negras em cargos de lideranças nas maiores empresas do país mostra que o racismo estrutural atua em diversas dimensões e camadas.
Ele estrutura a sociedade a partir da desvalorização e restrição de oportunidades de pessoas negras e na ascensão social.
Um dos exemplos de racismo estrutural brasileiro é a morte do menino Miguel Otávio Santana da Silva, deixado no elevador por Sarí Côrte Real, patroa da mãe de Miguel, enquanto a doméstica passeava com o cachorro da família. A patroa apertou o botão de um andar alto, liberou a porta e, indiferente, retornou à casa para continuar fazendo as unhas.
Miguel, na época com 5 anos, desembarcou em outro andar, passou por uma porta e, à procura da mãe, acabou chegando em uma área sem tela de proteção, e despencou de uma altura de 35 metros.
O menino era filho único da empregada doméstica Mirtes Renata. Mirtes o levou ao trabalho porque a escola estava fechada em função das medidas sanitárias necessárias na pandemia causada pelo coronavírus.
O caso é emblemático ao mostrar as possibilidades de escolha de uma pessoa negra e uma pessoa branca diante de um mesmo contexto.
A secretaria de Combate ao Racismo da CUT, Maria Julia Reis Nogueira, afirma que “só seremos realmente livres quando homens e mulheres, negros e brancos, forem tratados de forma que seus direitos sejam assegurados por toda sociedade brasileira.”
“O Brasil é um país continental que convive com as contradições de consolidar a democracia e ainda conviver com situações de racismo e de desigualdade. Para se tornar um país desenvolvido precisamos erradicar toda e qualquer discriminação e preconceito”, completa Maria Julia.
Outro exemplo de racismo estrutural que não se pode esquecer foi a morte da empregada doméstica de 63 anos no Rio de Janeiro, a primeira vítima da Covid-19 no país, que trabalhava em um apartamento no Alto Leblon, bairro da zona sul do Rio – região com o metro quadrado mais valorizado do país.
Foi negado à trabalhadora o direito de ficar em casa durante a quarentena, já que ela fazia parte do grupo de risco. A patroa que havia chegado da Europa se contaminou e sobreviveu, a doméstica não.
A pandemia de Covid-19 foi um momento de exacerbação do racismo estrutural no Brasil, onde os mais afetados pela maior crise sanitária do século foram, além das pessoas em situação de vulnerabilidade social, a população negra, indígena e a classe trabalhadora, como a doméstica do Rio de Janeiro e o menino de Pernambuco.
Estudo do Núcleo de Operações e Inteligência em Saúde, grupo da PUC-Rio, confirma que pretos e pardos morreram mais de Covid-19 do que brancos no Brasil.
O grupo analisou a variação da taxa de letalidade da doença no país de acordo com variáveis demográficas e socioeconômicas da população.
Considerando esses casos, quase 55% de pretos e pardos morreram, enquanto, entre pessoas brancas, esse valor ficou em 38%. A porcentagem foi maior entre pessoas negras do que entre brancas em todas as faixas etárias e também comparando todos os níveis de escolaridade.
Para combater o racismo e essas desigualdades, é necessário uma disposição política de reconhecimento, diz Adriana. “Quando a gente discute racismo, a gente está discutindo uma possibilidade de readequação e de distribuição de bens materiais que são simbólicos na sociedade brasileira. Isso é uma questão central”, afirma.