O Brasil é um país violento. A triste e conhecida afirmação foi uma vez mais confirmada pelo Anuário Brasileiro de Segurança Pública 2023, na 17ª edição do levantamento. A publicação, produzida pelo Fórum Brasileiro de Segurança Pública, traça o mapa da violência durante o ano de 2022, organizado por tipo de crime e agressão aos direitos humanos e regiões do Brasil.
No ano passado, foram registradas 47.508 mortes violentas no país. O número vem diminuindo desde 2018 e é o menor em 12 anos, mas o ritmo de queda nos casos desacelerou: entre 2020 e 2021, a redução foi de 4%, e entre 2021 e 2022, de 2,4%. A contagem inclui homicídios dolosos, latrocínios, lesão corporal seguida de morte e mortes decorrente de intervenção policial. Esse patamar é alarmante, pois, segundo a Organização das Nações Unidas (ONU), em estudo de 2020, com 2,7% da população global, o país tem cerca de um quinto dos homicídios no mundo.
Entre as vítimas, 91,4% eram do sexo masculino, 76,9% eram pessoas negras e 50,2% tinham entre 12 e 29 anos. Em 76,5% do total, esses crimes extremos foram cometidos com arma de fogo, e por isso um dos grandes questionamentos feitos pelo Anuário é sobre a facilitação do acesso às armas letais durante o governo de Jair Bolsonaro (PL). Em 2022, havia 783,3 mil pessoas registradas como colecionadores de armas, atiradores desportivos e caçadores, conhecidos como CACs (número sete vezes maior do que em 2018) e foram vendidas 420,5 milhões de munições (alta de 147% em relação a 2017).
Para o secretário de Combate ao Racismo da Confederação Nacional de Trabalhadores do Ramo Financeiro (Contraf-CUT), Almir Aguiar, o racismo estrutural é um dos responsáveis por grande parte desses números. “Desde que os primeiros negros sequestrados do continente africano chegaram ao Brasil nos navios negreiros, em 1535, a população negra enfrentou a escravidão, fruto da visão etnocêntrica branca, europeia, e ainda hoje, o negro vive subjugado”, disse ele.
Almir ressalta que “o Anuário de Segurança Pública mostra essa realidade cruel, basta observar que do total de 47.508 homicídios, 76,9% eram pessoas negras, os registros de racismo saltaram de 1.464 casos em 2021 para 2.458 no ano passado, os registros de injúria racial chegaram a 10.990”.
O Nordeste foi a região em que houve a maior queda na quantidade de mortes violentas (4,5%), seguida pelo Norte (2,7%) e Sudeste (2%). O Sul e o Centro-Oeste apresentaram alta de 3,4% e 0,8%, respectivamente. Os números indicam uma taxa de 23,4 mortes por 100 mil habitantes. Por estado, São Paulo tem o índice mais baixo, de 8,4, e o Amapá, o mais alto, de 50,6. No ano, ocorreram 6.429 mortes em intervenções policiais, uma média de 17 por dia.
O número de estupros foi o maior já registrado na história: foram 74.930, e 56.820 vítimas eram vulneráveis. Em relação a 2021, a alta foi de 8,2%. Nesse tipo de crime, 88,7% das vítimas eram do sexo feminino e 56,8%, pessoas negras. Mais de dois terços, ou 68,3% dos casos, ocorreram na própria residência da vítima, e 9,4% em vias públicas.
As crianças são as mais afetadas, com 61,4% das vítimas com até 13 anos e 10,4% com menos de quatro anos. Dos agressores desse contingente, 86,1% são conhecidos e 64,4%, familiares. As pessoas com 14 anos ou mais foram vítimas principalmente de conhecidos (77,2%) e parceiros ou ex-parceiros íntimos (24,3%).
Para a secretária da Juventude da Contraf-CUT, Bia Garbelini, a Bia, “é gritante o abandono que a juventude sofreu nos últimos anos. Os dados do anuário mostram que 50% das mortes foram crimes contra jovens. Isso é alarmante quando olhamos para o quadro de violência sexual, pois as maiores vítimas também são as mulheres jovens, e pior, muitas vezes crianças”.
Bia reforça que “as políticas públicas precisam ser transversais e considerar essas pessoas todas, precisam considerar as questões de gênero, de raça, mas sempre lembrando que há muitas pessoas jovens. Isso é muito triste, porque o Brasil tem uma quantidade de jovens muito grande, diferentemente de outros países europeus, por exemplo”.
O Anuário aponta que 22.527 crianças e adolescentes foram vítimas de maus tratos – 60% tinham de zero a nove anos. O crescimento do abandono de incapaz foi de 14%; dos maus tratos, de 13,8%; e da exploração sexual infantil, de 16,4%.
Em 2022, foram registrados 1.437 feminicídios (alta de 6,1%) e 4.034 homicídios femininos (alta de 1,2%). Entre as vítimas de feminicídios, 61,1% eram negras e 71,9% tinham entre 18 e 44 anos. A cada dez dessas mulheres, sete perderam a vida dentro de casa, 53,6% delas assassinadas pelo parceiro íntimo, 19,4% por ex-parceiro e 10,7% por algum familiar.
Os registros de assédio sexual também subiram 49,7% e totalizaram 6.114 casos. A importunação sexual teve um crescimento de 37%, com 27.530 casos. Todos os indicadores de violência doméstica tiveram aumento: foram 245.713 agressões violentas (alta de 2,9%) e 613.529 ameaças (mais 7,2%).
Ao todo, foram feitas 899.485 chamadas ao 190 – ou 102 acionamentos à Polícia Militar por hora, em média. No ano, foram concedidas 445.456 medidas protetivas de urgência, 13,7% a mais do que no período anterior.
A secretária da Mulher da Contraf-CUT, Fernanda Lopes, aponta que “a alta no número de violência contra a mulher, de assédio e estupros é principalmente devida à falta de políticas públicas eficazes voltadas às mulheres nesses últimos anos recentes, quando não havia sequer um ministério que cuidasse da questão”.
Por isso, para Fernanda, “são de suma importância as ações que o governo Lula vem fazendo, como a Patrulha Maria da Penha e as medidas anunciadas recentemente pelo Ministério da Mulher exatamente para acolhimento dessas mulheres vítimas de violência”. Outra política pública contra violência de gênero, colocada em prática pelo governo federal, é a expansão de unidades da Casa da Mulher Brasileira, iniciativa que oferece atendimento integrado e humanizado para mulheres em situação de violência, anunciada recentemente pela Ministra da Mulher, Cida Gonçalves.
Os casos de transfobia, que são enquadrados na lei do racismo desde 2019, passaram de 316 em 2021 para 488 em 2022, um salto de 54%. Nas ocorrências não classificadas como racismo, foram relatados 2.324 casos de lesão corporal, 163 homicídios dolosos e 199 estupros contra pessoas da comunidade LGBTQIAPN+.
Houve queda nos roubos em 2022 em todas as categorias pesquisadas: a instituições financeiras (redução de 21,9%), a estabelecimentos comerciais (15,6%), a residências (13,3%), a transeuntes e de cargas (ambos, 4,4%). No entanto, os chamados “crimes da moda” foram bastante significativos: houve 1.819.409 estelionatos (alta de 326,3% desde 2018) e 999.223 roubos ou furtos de celulares (16,6% a mais que 2021). Também foram registrados 208 golpes por hora em 2022, além de 200.322 fraudes eletrônicas ao longo do ano.
Havia 832.295 pessoas encarceradas no país, ou seja, 230.578 acima da capacidade do sistema prisional, além de 91.362 presos com monitoramento eletrônico (tornozeleira). Dessa população privada de liberdade, 95% eram do sexo masculino, 68,2% eram pessoas negras e 62,6% tinham entre 18 e 34 anos. Ocorreram 390 assassinatos dentro do sistema previdenciário no ano passado. Por outro lado, no sistema socioeducativo eram 12.154 os adolescentes em meio fechado, redução de 6,3% em relação a 2021 e de 50,4% desde 2018.
A mudança desse quadro, em especial no que diz respeito às questões raciais, segundo Almir, requer postura afirmativa em várias esferas sociais. “Está claro que a sociedade precisa rever seus conceitos e entender que o enfrentamento a esses crimes passa pela educação familiar, por uma política de inclusão de negros e negras nas universidades e nos trabalhos mais qualificados, com salários iguais, além de punições mais severas para racistas”, diz o secretário.
A falta de atenção aos jovens tem consequências negativas de longo prazo para a sociedade, como observa Bia. “Temos aí uma grande força de trabalho, que poderia ser uma vantagem para a construção de um Brasil mais justo, só que os jovens estão sem perspectiva de futuro, sem emprego, sem estudo e seguem sendo mortos, vítimas de violência. É um quadro deprimente, e todas as forças progressistas precisam lutar para mudá-lo, para exigir do atual governo investimento em formação e empregabilidade, para que esses jovens tenham perspectiva melhor”.
Com relação às mulheres, Fernanda enfatiza que “o assunto precisa ser debatido exaustivamente para que esses números baixem, para que as pessoas entendam o que é a agressão de gênero, o que é o assédio sexual. Não é um tema fácil de conversar, é um tema que machuca, mas todos precisam ter os olhos abertos, porque aqueles que violentam as mulheres estão entre nós, muitas vezes são familiares ou colegas de trabalho. Então é um debate que tem que ser constante, pois todos nós precisamos aprender a denunciar, para que esses agressores sejam efetivamente punidos”.
Acesse aqui o Anuário Brasileiro de Segurança Pública 2023.
Fonte: Contraf-CUT