Enquanto a Organização Internacional do Trabalho (OIT) lança para o mundo uma base referencial que objetiva alcançar o trabalho decente, com a Convenção 190, o governo Bolsonaro-Guedes implementa uma série de políticas que consolida o patriarcado e a estrutura sócio-cultural machista e misógina no Brasil. Carregada de propósito, a postura instiga o aumento de casos de violência no mundo do trabalho, principalmente contra as mulheres. A reflexão fez parte do webnário “Assédio moral e sexual nos locais de trabalho: Convenção 190 da OIT”, realizada pela CUT-DF, nessa segunda-feira (30/11).
Segundo dados do Ministério Público do Trabalho (MPT), em 2019, foram registradas mais de 300 denúncias de assédio sexual contra as mulheres no trabalho. Isso sem contar com a subnotificação dos casos, devido à ausência de canais de denúncia, de legislação que verse especificamente sobre o assunto, da própria cultura machista e do consequente medo da vítima em denunciar o agressor.
Mesmo com o cenário assustador – e embora seja signatário da OIT –, o Brasil não ratificou a Convenção 190 da OIT, que indica regras e parâmetros para coibir a violência e o assédio no mundo do trabalho, dando relevância para o recorte de gênero. Ao contrário, as reformas implementadas pelo governo ampliam a vulnerabilidade de trabalhadoras e trabalhadores, uma vez que flexibilizam direitos históricos da classe trabalhadora e desmantelam o Estado.
“A reforma administrativa e todas as outras propiciam a criação de mecanismos para a perseguição e o assédio. Avançamos não para ratificar a Convenção 190 de OIT, mas para criar os mecanismos de perseguição”, diz a secretária de Mulheres da CUT-DF, Thaísa Magalhães.
“Vivemos um momento extremamente delicado, onde o próprio presidente da República se comporta como um assediador das mulheres e diz coisas que são reproduzidas no ambiente de trabalho justamente por que a própria representação do Brasil não trata como sendo violência (contra as mulheres). Não basta que o Brasil seja signatário da OIT. É preciso que o governo construa políticas para que sejam, de fato, garantidas as implementações dos acordos internacionais, incluindo a Convenção 190”, afirma a sindicalista.
Durante o debate dessa segunda, a diretora de Assuntos e Políticas para as Mulheres Educadoras do Sindicato das/os Professoras/es do DF (Sinpro-DF) Mônica Caldeira disse que as reformas do governo Bolsonaro vêm na perspectiva de “consolidar o patriarcado para a manutenção e a sustentação do capitalismo”. Segundo ela, o perfil conservador do atual governo e a ausência de políticas públicas impulsionam as diversas violências contra as mulheres, principalmente as que são realizadas no ambiente doméstico, tendo repercussão incontestável nos locais de trabalho.
“A violência doméstica não é só agressão física, é um ciclo de degradação da mulher no espaço da família. E essa condição subalterna da mulher nas relações da família reforça sua condição subalterna na sociedade e, por conseguinte, no mundo do trabalho. Não à toa, governos conservadores associam o Estado à família. E não é uma família plural, mas aquela de homem, mulher e filho; uma família que determina papéis sociais nos quais o Estado quer se consolidar. E isso impacta no mundo do trabalho”, disse a professora. “Precisamos de políticas específicas para as mulheres no mundo do trabalho, e a convenção 190 nos dá esse horizonte”, alerta.
Diversas formas de violência
No webnário realizado pela CUT-DF, a secretária de Mulheres da CUT Nacional, Junéia Batista, lembrou que a luta pela aprovação da Convenção 190 da OIT durou anos. Ela reforçou que, embora a norma internacional contemple homens e mulheres, são as mulheres as principais vítimas desse tipo de violência que leva ao descumprimento dos direitos humanos, à ameaça à igualdade de oportunidades e que, por isso, estão na contramão do direito ao trabalho decente. “Sofremos violência em qualquer espaço desde o momento em que a gente nasce até a hora que a gente morre”, repudia.
A dirigente sindical explica que no mundo do trabalho, assim como na vida privada, há a violência sexual, a moral, a psicológica, a física e a patrimonial, que são praticadas em diversos níveis. “Há a violência vertical descendente, praticada do superior hierárquico para o que realiza a tarefa; há a violência horizontal, realizada de um colega para outro; e há a violência vertical ascendente – muito menos comum –, praticada de um grupo para o chefe. Em todas elas, as mulheres são maioria”, ressalta.
A presidenta da Comissão da Mulher Advogada da OAB-DF, Nildete Santana, que também integrou o grupo de debatedoras do webnário da CUT-DF, explica que, no mundo do trabalho, ainda há o assédio institucional, realizado quando “a empresa dá suporte, protege ou acolhe o agressor”.
Ela explicou que humilhação, desprezo, desqualificação, desmoralização, fornecimento de trabalho além da possibilidade de realização da pessoa e pedido de trabalho urgente quando não há urgência são algumas formas de se assediar moralmente trabalhadoras e trabalhadores.
Novidades bem-vindas
Nildete Santana apresentou três novidades que a Convenção 190 da OIT traz para a legislação brasileira.
A primeira é quanto à configuração de assédio. Segundo Santana, no Brasil, o assédio é reconhecido como um ato contínuo. Entretanto, a orientação da OIT diz que a prática também pode ser identificada por um único ato. A segunda novidade, como destaca Nildete Santana, aborda não só o dano causado à vítima, mas as possíveis causas de dano. E, além disso, a terceira novidade da norma internacional aborda a questão de gênero, nunca antes encampada no Brasil.
“No Brasil, não temos uma legislação trabalhista que teça qualquer detalhe sobre assédio moral. O assédio existe, é reconhecido pela doutrina e pela jurisprudência através de normativas constitucionais de respeito e valorização da pessoa humana e do código civil, mas não há legislação própria”, reforça a presidenta da Comissão da Mulher Advogada da OAB-DF.
Já a representante da OIT Brasil Thaís Dumet, também debatedora do webinário da CUT-DF, destaca que embora “as violências do mundo do trabalho sejam múltiplas e constantes”, internacionalmente, “ainda se tem muito pouco sobre a violência no ambiente de trabalho”.
Para ela, a Convenção 190, que se mostra como uma “oportunidade histórica para definir o mundo do trabalho com dignidade e respeito”, traz a ideia do que deve ser aplicado pelos 187 países-membro da OIT, que podem utilizar o documento para a orientação e criação de políticas públicas mesmo que não tenham ratificado a convenção.
Durante sua explanação, ela mostrou que a Convenção 190 trabalha em três eixos. O primeiro seria prevenção e proteção, com criação de planos de protetivos e canais de denúncia. O segundo eixo seria o da aplicação e reparação, apontando uma reação imediata para que as vítimas se sintam seguras em denunciar. “Um dos grandes casos do silenciamento e aumento da dor é o medo ou a não possibilidade de denúncia”, explica, e continua: “A fragilidade (da vítima) aumenta em momentos crise. Quando o número de empregos diminui, aumenta o medo de perder emprego, e a violência cresce”.
O terceiro eixo, segundo Dumet, seria o da orientação e formação. “Precisamos saber o que é, de que forma se dá (a violência). E para saber, é preciso que se tenham debates exaustivos, com exemplos concretos. Algumas coisas são tão arraigadas culturalmente, que a gente sequer percebe que aquilo é violência e traz prejuízo”, diz.
O que podemos fazer
Para a presidenta da Comissão da Mulher Advogada da OAB-DF, Nildete Santana, é fundamental denunciar os casos de assédio e violência nos locais de trabalho. “Denuncie! Quanto mais denuncias houver, mais os assediadores ficarão inibidos. Quanto mais discutirmos, mais os trabalhadores saberão o que é assédio”, diz.
Ela ainda afirma que os prejuízos da violência nos locais de trabalho atingem não só a vítima, mas toda a sociedade. “Comumente, quando um trabalhador é assediado, ele tem problema físico ou psicológico. E normalmente é atendido pelo governo (Sistema Único de Saúde). Ou seja, toda sociedade paga pelo erro de uma empresa ou de um assediador.”
A visão ampla é real e concreta. Entretanto, Thaís Dumet, representante da OIT Brasil, reforçou que a principal perda é da vítima, principalmente quando é uma mulher. “Mulheres que sofrem violência no ambiente de trabalho perdem o posto ou têm sua produtividade diminuída; ou são transferidas de local”, comenta.
A secretária de Mulheres da CUT-DF, Thaísa Magalhães, avalia que “o assédio é também um mecanismo político de ascensão no trabalho”, e que o combate a essa prática é “extremamente difícil”, já que há um limiar tênue entre assédio e divergência, sendo necessário também o compromisso das entidades sindicais para romper com essa realidade. “O debate de hoje deve ser replicado em cada sindicato, em cada local de trabalho. Esse tema deve deixar de ser tabu e ser discutido em todos os espaços”, orienta.
Thaísa Magalhães ainda analisa que, no Brasil, a cultura patriarcal induz à naturalização das diversas formas de violência contra as mulheres, e que, portanto, “uma das maneiras mais simples de se combater o assédio é combatendo a cultura machista”. “Não naturalizar piadinhas, comentários machistas e situações que são de violência no cotidiano é uma tarefa de todas e todos.”
Mais sobre a Convenção 190
A Convenção 190 foi assinada em 2019, no aniversário de 100 anos da OIT, durante sua 108ª Conferência, realizada em Genebra (Suíça). O instrumento jurídico internacional, debatido por mais de quatro anos, é o primeiro da história a proteger os trabalhadores de todas as formas de assédio e violência no trabalho.
A aprovação da Convenção contou com 439 votos favoráveis, sete contrários e 30 abstenções. Entre as abstenções, a do representante do setor empresarial brasileiro Murilo Portugal, à época presidente da Federação Brasileira dos Bancos (Febraban).
Leia a íntegra do texto da Convenção 190 da OIT.
Série de debates
O webnário “Assédio moral e sexual nos locais de trabalho: Convenção 190 da OIT” é o segundo da série de três webnários realizados pela CUT-DF para fortalecer a campanha 21 Dias de Ativismo pelo Fim da Violência contra as Mulheres.
O primeiro debate foi realizado no primeiro dia da campanha, 20 de novembro, com o tema “Desafios e violências impostos às mulheres negras pelos governos neoliberais” (linkar matéria). A série será encerrada no dia 10 de dezembro, último dia da campanha, com o tema “Busca por equidade de direitos: desafios das mulheres dos Direitos Humanos”. O debate será às 19h30, com transmissão na página do Facebook da CUT-DF e no canal do YouTube da Central.
Fonte: CUT-DF