RBA
Vitor Nuzzi
São Paulo – À pergunta se a Proposta de Emenda à Constituição (PEC) 32, da “reforma” administrativa, tem algum aspecto positivo, a socióloga Graça Druck é sucinta: “Não!”. A professora da Faculdade de Filosofia e Ciência (Departamento de Sociologia) da Universidade Federal da Bahia (UFBA), alerta que o projeto, enviado em setembro de 2020 pelo governo e agora em comissão especial da Câmara, representa “forte retrocesso para o Estado democrático”, na medida em que atinge a estabilidade do servidor e os concursos públicos.
Para ela, o uso de contratações por processos de seleção representa a volta do “coronelismo” e transforma os servidores em “funcionários do governo de plantão”. “(A “reforma” administrativa) significa a destruição do serviço público. Na realidade, é o fim dos servidores públicos estatutários”, afirma a professora.
Os argumentos apresentados para “justificar” as mudanças não chegam a ser novidade, observa ainda a pesquisadora. Já se fala em Estado “engessado” desde os anos 1990, nos anos FHC. Mesmo o discurso do relator da PEC, deputado Arthur Oliveira Maia (DEM-BA), com críticas à Constituição, não surpreende, diz Graça Duck. Ele “já demonstrou claramente o seu lado, quando foi também relator e enfático defensor do PL 4.330, que propunha a liberação total da terceirização, uma das formas mais perversas e precárias de trabalho”. Para ela, qualquer forma efetivamente democrática e republicana deve considerar um projeto político para o país e um Estado de bem-estar.
Na justificativa da PEC 32, o Executivo afirma que o objetivo da “reforma” administrativa é dar “maior eficiência, eficácia e efetividade à atuação do Estado”. Na sua opinião, a proposta caminha nesse sentido?
Não. A proposta vai no sentido contrário. Ao acabar com a estabilidade, reduzir drasticamente os concursos públicos, substituindo servidores estatutários por contratos precários, temporários e pela terceirização, o governo constitucionaliza situações de precariedade no trabalho que já ocorrem hoje no serviço público, repercutindo sobre a qualidade dos serviços prestados.
Na instalação da comissão especial que vai analisar o mérito da PEC, o relator, deputado Arthur Maia, chegou a dizer que a Constituição de 1988 teve “excessos”. A sra. concorda? Ou é apenas mais um ataque a direitos em mais uma reforma?
Isso também fez parte da justificativa da reforma do Estado nos anos 1990, no governo Fernando Henrique Cardoso. Na exposição de motivos do Plano Diretor da Reforma do Aparelho do Estado e em documentos assinados pelo então ministro Bresser-Pereira, havia a afirmação que a Constituinte de 1988 teria “engessado” o Estado, ao exigir concurso público obrigatório para ingresso na carreira, impedindo a flexibilidade nos contratos, isto é, a precarização das relações de trabalho.
Quanto a Arthur Maia, sem dúvida, o que ele se refere a excessos diz respeito aos direitos conquistados na Constituição. Esse é o perfil do deputado relator, que já demonstrou claramente o seu lado, quando foi também relator e enfático defensor do PL 4.330, que propunha a liberação total da terceirização, uma das formas mais perversas e precárias de trabalho.
Existe algum ponto positivo na proposta apresentada pelo governo?
Não.
A seu ver, então, quais os principais aspectos negativos?
O objetivo central da PEC 32 é acabar com a estabilidade do servidor público e com os concursos públicos. Isto significa um forte retrocesso para um Estado democrático. As contratações por “processos simples de seleção” representam a volta do Coronelismo, transformando os servidores em funcionários do governo de plantão. E isso significa a destruição do serviço público. Na realidade, é o fim dos servidores estatutários, pois segundo dados do próprio governo, 26% dos atuais servidores se aposentarão até 2022, e a previsão é que 40% se aposentem até 2030.
Os concursos públicos e a estabilidade são conquistas da Constituinte de 1988, que representam um avanço para a construção de um Estado democrático e social. Os concursos são a forma mais democrática (e moderna) de ingresso na carreira pública, pois comprovam a qualificação/ conhecimento/capacidade de forma impessoal para o cargo, rompendo com as práticas do Coronelismo, em que o quadro de pessoal era composto por indicação de políticos e autoridades do poder público
Apadrinhamento, nepotismo, favores eleitorais, dentre outros, são valores que não respeitam as necessidades da população de contar com profissionais competentes para prestar os serviços públicos.
Por exemplo, é correto mexer no princípio da estabilidade ou isso fragiliza o servidor?
A estabilidade é indissociável da concepção de servidores públicos, que não são empregados do governo de plantão, mas são agentes do Estado que executam os serviços públicos. São produtores, através do seu trabalho, dos bens público-coletivos, como saúde, educação, assistência social, segurança, dentre outros. São servidores da sociedade. E, para cumprirem essa função, precisam garantir a continuidade do seu trabalho.
Por isso, não podem ficar à mercê de chefias ou de políticos que possam demiti-los, inclusive por perseguição política. A estabilidade é uma proteção para a sociedade, pois só com estabilidade é possível contar com serviços públicos que atendam as demandas sociais e não as demandas do mercado.
Se é verdade que o serviço público precisa de uma “reforma” administrativa, o que deveria ser feito em benefício do servidor, da população que precisa desse serviço e do próprio Estado?
Qualquer reforma democrática e republicana do Estado brasileiro precisa estar inserida num projeto político para o país, que tenha como um dos elementos centrais o fortalecimento de um Estado de bem-estar com controle social. Para isso, é indispensável redefinir as prioridades do orçamento público, invertendo o que ocorre atualmente, quando 39% das despesas são para o pagamento de juros e correções da dívida pública. Ou seja, vão para as instituições financeiras. O problema do país não é a falta de recursos, mas as escolhas que os governantes fazem em nome das alianças e compromissos com as classes dominantes.
No caso brasileiro, a partir do golpe de 2016, houve um fortalecimento das políticas neoliberais, a exemplo da EC (Emenda Constitucional) 95, que congelou os gastos sociais por 20 anos (e que precisa ser revogada), a contrarreforma trabalhista e a liberalização da terceirização em 2017, dentre outras.
O governo Bolsonaro radicalizou essas políticas – é o fundamentalismo neoliberal – e está destruindo o Estado brasileiro, o patrimônio nacional e os direitos sociais. Trata-se, portanto, da necessidade de um projeto antineoliberal e de construção de um outro Estado e de um outro país.
Militares e membros do Judiciário deveriam ser incluídos?
Um dos principais motivos para a PEC 32 propagandeados pelos seus defensores é a redução do gasto público. E, para isso, argumentam sobre altos salários, privilégios e sobre o “inchaço” do Estado. Todos argumentos falaciosos. A imensa maioria dos servidores públicos que está nos municípios (60%) ganha uma média de R$ 2.835. Os altos salários estão no Judiciário e no Legislativo. Mas esses – e os militares – não estão incluídos na reforma administrativa do governo, o que demonstra que o objetivo não é a redução do gasto público.
A questão, portanto, não é se membros do Judiciário, Legislativo e militares deveriam ou não ser incluídos. Não se pode aceitar uma reforma que tenha por objetivo a redução de gastos, pois estaríamos compactuando com as políticas de ajuste fiscal e concordando com a lógica da PEC 32.