RBA
Cida de Oliveira
São Paulo – O número de assassinatos de indígenas aumentou 61% em 2020, conforme o relatório Violência Contra os Povos Indígenas do Brasil, lançado nesta quinta-feira (28) pelo Conselho Indigenista Missionário (Cimi). O documento, atualizado anualmente, faz um retrato da violência sofrida pelos povos originários do Brasil. E a versão atual, com dados de 2020, mostra um quadro trágico. Ao longo do ano foram assassinados 182 indígenas em todo o país. No ano anterior, primeiro do governo de Jair Bolsonaro, foram 113.
A grave crise sanitária provocada pela má gestão da pandemia do coronavírus pelo governo teve efeito brutal sobre os indígenas. Segundo o relatório, morreram 90 indígenas de covid-19 no ano passado. Outra perversidade contra esses povos é que as invasões por grileiros, garimpeiros e madeireiros espalharam o vírus pelos seus territórios, além de outras doenças. E, na condição de “apadrinhados” do presidente, deram seguimento às ações ilegais nesses territórios.
Segundo a Secretaria Especial de Saúde Indígena (Sesai) e as secretarias estaduais de saúde, os estados mais violentos contra os povos originários foram Roraima (66), Amazonas (41) e Mato Grosso do Sul (34). Os dados fornecidos pela Sesai e pelos estados, porém, não apresentam informações detalhadas sobre as vítimas e as circunstâncias dos assassinatos.
Nesse contexto, dois casos ocorreram em meio a desastrosas ações da polícia militar. No Amazonas, o “massacre do rio Abacaxis” teve origem no conflito causado por turistas que entraram ilegalmente no território de indígenas e ribeirinhos, na região dos rios Abacaxis e Marimari, para praticar pesca esportiva. Na operação, foram mortos dois indígenas do povo Munduruku e pelo menos quatro ribeirinhos. Em Mato Grosso, quatro indígenas do povo Chiquitano, que caçavam numa área próxima à sua aldeia, foram mortos por policiais do Grupo Especial de Fronteira (Gefron).
Em 2020 foram registrados 304 casos de violência contra indígenas. São eles: abuso de poder (14); ameaça de morte (17); ameaças várias (34); assassinatos (182); homicídio culposo (16); lesões corporais dolosas (8); racismo e discriminação étnico-cultural (15); tentativa de assassinato (13); e violência sexual (5). Em 2019 foram registrados 277 casos, muitos dos quais por abuso de poder.
Ameaças, racismo e discriminação étnico-cultural ocorreram quando os indígenas buscavam atendimento ou assistência em meio à pandemia. Além das mortes e da fome que atingiu muitas comunidades em situação de vulnerabilidade extrema, o preconceito e o racismo foram agravantes do sofrimento vivenciado no ano passado pelos povos indígenas durante a crise sanitária.
Ainda nesta categoria foram registrados os seguintes dados: desassistência geral (51 ocorrências); desassistência na área de educação escolar indígena (23); desassistência na área de saúde (82); disseminação de bebida alcoólica e outras drogas (11); e morte por desassistência à saúde (10), totalizando 177 casos.
Com base na Lei de Acesso à Informação (LAI), o Cimi obteve dados parciais da Sesai de suicídio e mortalidade na infância indígena. Em 2020, foram registrados 110 suicídios de indígenas em todo o país. Os estados do Amazonas (42) e Mato Grosso do Sul (28) mantiveram-se como os que registraram as maiores quantidades destas ocorrências.
O número de casos se manteve igual aos de 2019, quando os dados da Sesai indicaram 133 suicídios. Foram registrados ainda 776 óbitos de crianças de 0 a 5 anos em 2020. Também neste caso, os estados com mais casos foram os mesmos que no ano anterior: Amazonas (250 casos), Roraima (162) e Mato Grosso (87). Embora os dados sejam os mesmos de 2019, as secretarias lembram que os números são parciais.
Na análise do Cimi, “o segundo ano do governo de Jair Bolsonaro representou, para os povos originários, a continuidade e o aprofundamento de um cenário extremamente preocupante em relação aos seus direitos, territórios e vidas, particularmente afetadas pela pandemia da covid-19 – e pela omissão do governo federal em estabelecer um plano coordenado de proteção às comunidades indígenas”.
Os casos de invasões possessórias, exploração ilegal de recursos e danos ao patrimônio aumentaram em 2020. Passaram de 256 no primeiro ano do governo de Jair Bolsonaro para 263, em 201 terras indígenas e contra 141 povos, em 19 estados. Em 2018 haviam sido registrados 111 casos.
As invasões e os casos de exploração de recursos naturais e de danos ao patrimônio em 2020 seguem o modelo identificado no ano anterior: madeireiros, garimpeiros, caçadores e pescadores ilegais, além de fazendeiros e grileiros. Esses grupos invadem as terras indígenas para se apropriar ilegalmente da madeira, devastar rios em busca de ouro e outros minérios, desmatar e queimar largas áreas para a abertura de pastagens e monoculturas.
Em muitos casos, os invasores dividem em lote a terra indígena, inclusive ocupada por povos isolados, e vendem de maneira ilegal.
Esses grupos e indivíduos atuam com a certeza da conivência do governo federal, que chegou a defender a desregulamentação ambiental, aproveitando-se das atenções voltadas à pandemia de covid-19.
Os povos Yanomami, Ye’kwana e Munduruku enfrentam a ação dos invasores, a omissão do Estado e o agravamento da crise sanitária. Segundo o Cimi, na TI Yanomami, onde é estimada a presença ilegal de cerca de 20 mil garimpeiros, os invasores devastam o território, armam conflitos, agem de violência contra os indígenas e ainda espalham doenças que matam anciões que eram verdadeiros guardiões da cultura, da história e dos saberes de seus povos. “Uma perda cultural inestimável para toda a humanidade”, segundo o Cimi.
Segundo dados da Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (Apib), mais de 43 mil indígenas foram contaminados pela Covid-19 e pelo menos 900 morreram por complicações da doença no ano de 2020.
Segundo o relatório, embora nem todos os tipos de violência tenham aumentado em relação ao ano anterior, a soma das categorias “violência contra a pessoa” e “violência contra o patrimônio indígena” foi a maior dos últimos cinco anos. No mesmo período, os casos de “violência por omissão do poder público” registrados em 2020 só foram menores que os de 2019, primeiro ano do governo Bolsonaro.
Em relação aos três tipos de “violência contra o patrimônio”, que formam o primeiro capítulo do Relatório, foram registrados 832 casos de omissão e morosidade na regularização de terras; 96 casos de conflitos referentes a direitos territoriais; e 263 casos de invasões possessórias, exploração ilegal de recursos naturais e danos diversos ao patrimônio. Os registros totalizam 1.191 casos de violências contra o patrimônio dos povos indígenas em 2020.
A paralisação das demarcações de terras indígenas é uma promessa seguida à risca pelo presidente Bolsonaro. Das 1.299 terras indígenas no Brasil, 832 (64%) seguem pendentes de regularização. Desse total, 536 são áreas reivindicadas pelos povos indígenas que continuam engavetadas.
O relatório do Cimi traz ainda artigos que aprofundam a reflexão sobre a realidade dos povos indígenas. Neste ano, há três textos que abordam os impactos da pandemia sobre os povos indígenas, acompanhados de uma síntese dos dados de óbitos e contaminações entre indígenas sistematizados pela Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (Apib) e pela Sesai, a respeito do ano de 2020.
Os textos mostram como a pandemia afetou os povos indígenas, o descaso do governo federal na reação à crise sanitária e a situação dos indígenas encarcerados em meio à pandemia. Além disso, outros dois artigos discutem o racismo e a discriminação contra os povos originários e o sequestro da água dos rios pelo agronegócio no Tocantins.