Além disso, os bancos públicos respondem mais rápido nos momentos de crise econômica, como a de 2008, mantendo o circuito do crédito em funcionamento, comportamento distinto dos bancos privados, que nos momentos de crise se tornam mais avessos ao risco. Por isso, aos bancos públicos também podem ser atribuídos a função anticíclica na economia e funcional à dinâmica capitalista.
Dentre os marcos da esfera empresarial, o Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES), de 1952, foi e continua sendo fundamental para fornecimento de crédito de longo prazo. Por exemplo, foi peça indispensável no processo de industrialização pesada brasileiro, que proporcionou, dentre outros, uma maior diversificação produtiva e alargamento do mercado de trabalho, com aumento da diversificação dos empregos, mesmo que de forma desigual e combinada.
Na mesma linha do crédito de longo prazo, porém voltado ao aspecto habitacional, o extinto Banco Nacional de Habitação (BNH), de 1964, atuou na criação das primeiras linhas de crédito em grande escala para o acesso a um dos bens mais caros (desejado e raro) ao trabalhador: a casa própria. Essa função, atualmente, é desempenhada principalmente pela Caixa Econômica Federal (CEF), líder de mercado no segmento habitacional, criada em 1861.
Inicialmente criada para incentivar a poupança e conceder empréstimos sob penhor, atualmente a Caixa atua como banco comercial e agente responsável pelo Fundo de Garantia do Tempo de Serviço (FGTS), Programa de Integração Social (PIS) e Seguro-Desemprego, programas relevantes ao trabalhador formalizado, e por meio de programas sociais, como o Bolsa Família.
Não se pode esquecer do Banco do Brasil, criado em 1808 (portanto uma instituição bicentenária), que já atuou em todas as funções atribuídas à Caixa e, hoje, serve como um farol do setor bancário regulando indiretamente (como um parâmetro) a qualidade dos serviços bancários do país.
De fato, ao longo dos últimos trinta anos, muitos deles foram extintos ou privatizados, o que contribuiu para o aumento da concentração bancária no país, mas a sobrevivência dos poucos que ficaram pode revelar, novamente, a sua enorme utilidade para a vida do brasileiro, principalmente diante dos atuais desafios colocados por uma crise sanitária global imposta pela Covid-19 e seus impactos econômicos e sociais.
A existência do banco público é fruto de grandes questões pendentes do desenvolvimento nacional, principalmente aquelas referentes ao financiamento ao desenvolvimento, acesso ao crédito e em condições mais favoráveis e acesso a benefícios sociais. Atualmente, mesmo com elevada concentração bancária, a demanda por acesso ao crédito nunca foi plenamente satisfeita pela esfera privada no Brasil. Por isso, a principal função social dos bancos públicos no Brasil é, para além de promover serviços de intermediação financeira, atender de forma técnica as necessidades prementes da população.
Para ilustrar a questão, vamos aos dados. O Banco Central do Brasil divulga periodicamente estatísticas referentes ao setor financeiro no Brasil, sendo uma das fontes de informações mais completas para compreender a dinâmica bancária e financeira nacional.
De acordo com os dados disponíveis pelo Banco Central do Brasil (Bacen), o número de agências bancárias cresceu consideravelmente entre 2007 e 2016, com 4.344 novas unidades (Tabela 1). Entretanto, a partir de 2016 ocorreu uma inflexão desses números na série “contínua”, mas principalmente na “ajustada”, com redução em 2.768 unidades, fruto da crise política e econômica que pode ser atribuída ao Golpe de 2016, que deprimiu a economia com severas perdas sociais no período. O primeiro impacto dessas mudanças foi o aumento no tempo de espera por serviços básicos bancários com maiores filas.
O principal banco público, o Banco do Brasil, perdeu mais de 1 mil agências na virada de 2016 até abril de 2020, enquanto a Caixa Econômica Federal, o segundo maior, parou de crescer exatamente no ano de 2016. Dos bancos privados, o Bradesco mantém seu nível; o Itaú encolheu abruptamente; e o Santander segue em crescimento (Gráfico 2).
Dentre os principais bancos no Brasil percebe-se um crescimento da participação dos bancos privados relativamente aos públicos, principalmente após 2016. Esta modificação pode estar relacionada com processo de reestruturação bancária pública marcada pelo avanço das políticas de austeridade, cuja meta principal é reduzir a participação do Estado na economia.
Além disso, percebe-se a presença na presidência do Banco Central do Brasil de figuras ligadas a estes principais bancos privados. Henrique Meirelles, historicamente ligado ao BankBoston (cujos ativos no Brasil foram vendidos ao Itaú em 2006), dirigiu a instituição entre 2003 e 2010; Alexandre de Tombini, funcionário de carreira do Banco Central, presidiu a instituição entre 2011 e 2016, e , após este período, foi diretor do Fundo Monetário Internacional (FMI) e representante-chefe para as Américas no Banco Internacional de Compensações (BIS) ; Ilan Goldfajn, historicamente ligado ao Itaú, presidiu a instituição entre 2016 e 2019; e, Roberto Campos Neto, historicamente ligado ao Santander, é presidente desde 2019.
No que tange ao alcance regional dos bancos, a distribuição por grandes regiões das unidades públicas é mais homogênea do que o setor privado. Enquanto o setor público concentra 44% das suas unidades na Região Sudeste, com distribuição equivalente entre as regiões Nordeste e Sul, com 20% em cada; o setor privado concentra 61% na Região Sudeste e mostra maior desequilíbrio nas demais regiões.
No mapa das agências dos dois principais bancos públicos federais brasileiros percebe-se maior presença na Região Sudeste, com destaque para São Paulo, com 1.919 agências; em contraste, a Região Norte evidencia baixo nível, onde, por exemplo, Roraima possui apenas 19 agências.
A capilaridade da estrutura bancária pública potencializa as medidas públicas para o enfrentamento dos efeitos da Covid-19. Entre as mais importantes, a ampliação do crédito às micro e pequenas empresas, as maiores geradoras de empregos, deve ser foco primordial. O objetivo deve ser a manutenção dos empregos e do nível de renda com vistas a evitar um colapso geral do sistema e da vida das pessoas.
Assim, os bancos públicos cumprem ao menos quatro funções, a saber: a) fomento ao desenvolvimento econômico e regional, como principal fornecedora de crédito de longo prazo; b) na ação para o combate a crises econômicas, fomentando a manutenção do circuito crédito-renda num contexto de elevação de incertezas e riscos; c) no acesso a benefícios sociais, como o Bolsa Família, auxílio emergencial e benefícios referentes ao emprego formal; d) aumento da bancarização da população brasileira, principalmente na estratificação de baixa renda e acesso a agências em regiões de mais baixo dinamismo econômico.
A crise sanitária instalada provocou uma inflexão na trajetória de crescimento da economia brasileira, de estagnação para uma das maiores crises da história. Com efeito, o boletim Focus do Banco Central já estima uma queda de 4,1% no Produto Interno Bruto (PIB) para 2020. Nesse sentido, os bancos públicos são chamados para ação como instrumento para o combate para a grave crise econômica que assola o país, com impactos mais profundos sobre as classes mais vulneráveis em termos monetários.
Para além de peça-chave para fazer chegar o auxílio emergencial à população, do alcance de programas e benefícios sociais, os bancos públicos são atores relevantes na manutenção do circuito do crédito e da circulação da renda num ambiente econômico mais incerto, onde os bancos privados posicionam-se mais avessos ao risco. Em vista da especificidade da crise instalada, a institucionalidade do crédito deve ser revista para que se possa manter em funcionamento, com os devidos cuidados sanitários, no sentido de buscar uma diminuição dos efeitos econômicos e de circulação monetária numa economia monetária da produção.
Assim, os contratos de crédito na pandemia da Covid-19devem satisfazer um tripé tanto na captação governamental do recurso quanto sua distribuição:
– Parâmetro – as condições dos contratos devem ser regidas segundo termos fixos, onde os preços em juros, spread e inflação tenham baixo impacto sobre a solvência do contrato. Para tanto, tais parâmetros devem se distanciar da lógica de mercado, com vistas a evitar taxas flutuantes e processos de securitização que desestabilizem tanto o credor quanto o devedor. De tal modo que garanta a gestão estável dos papeis e facilitação de seu acesso.
– Transparência – auditoria deve ser cláusula obrigatória em todos os contratos para garantir a execução dos recursos de acordo com os critérios de “finalidade”. O desvirtuamento das operações pode gerar baixa efetividade dos resultados esperados, com a criação de bolhas especulativas, inflação e apropriação indevida do recurso público.
Uma reforma dessa natureza, para além de uma correção histórica, visa a ampliar a base de arrecadação de tributos e potencializar a dinâmica econômica, onerando mais quem tem mais capacidade de pagar tributos. Assim, na garantia de uma sólida base fiscal do Estado, deve-se pleitear a tributação progressiva em que os mais fortes financeiramente (ricos) contribuam mais, dada sua baixa incidência quando comparado aos demais países desenvolvidos.
Nesse tocante, os bancos regionais e estaduais podem se antecipar, mesmo com a intransigência da União, nessa frente. O Consórcio Nordeste, que congrega os nove governadores da região, é um exemplo. Ele representa o reativamento dessa lógica, que potencializa instituições como o Banco do Nordeste, a Chesf e a Sudene, inclusive no planejamento de ações com base no combate da Covid-19.
Em Sergipe (Banese – Banco do Estado do Sergipe) e Brasília (BRB – Banco de Brasília), o quadro se repete, pois há 1 (uma) unidade em quase todos os municípios. Cabe lembrar a especificidade de Brasília, pois ele é relativamente pequeno e o corte espacial é subdistrital, mais próximo da noção de bairros.
Já no caso do Espírito Santo (Banestes – Banco do Estado do Espírito Santo) existe uma cobertura completa de ao menos uma agência por município, evidenciando dois núcleos estaduais aglomerativos, o primeiro nas quatro principais cidades da Região Metropolitana de Vitória – Vitória, Vila Velha, Serra e Cariacica – e, o segundo, em Cachoeiro de Itapemirim, mais ao sul do Estado.
Não se deve esquecer, obviamente, dos poucos bancos de desenvolvimento estaduais e regionais que ainda existem no país e podem auxiliar, na manutenção do investimento, principalmente na retomada econômica. O BNDES faz esse papel do ponto de vista nacional, mas a região Nordeste possui o BNB – Banco do Nordeste, a região Norte possui o BASA – Banco da Amazônia, o Espírito Santo possui o BANDES – Banco de Desenvolvimento do Estado do Espírito Santo, Minas Gerais possui o BDMG – Banco de Desenvolvimento de Minas Gerais, entre outras instituições que tem como compromisso o fornecimento de crédito de longo prazo.
Os dados sugerem que, do ponto de vista do varejo de serviços financeiros, a despeito da fragilização em curso nos últimos 30 anos, o Brasil possui estrutura, pessoal qualificado e a capacidade de fomentar as relações de crédito, mas parece faltar uma orientação mais ampla das autoridades governamentais, imbuídas em desmontar instituições estatais. Dito de outra forma, o caos em curso parece ser resultado muito mais da incompetência da atual gestão federal do que dos componentes técnicos existentes nos mais diversos órgãos governamentais no país, incluindo os serviços financeiros de varejo.
Rafael da Silva Barbosa – Economista, doutor (UNICAMP), pós- doutorando em Política Social (UFES) e colunista do Brasil Debate.
Daniel Pereira Sampaio – É economista, doutor em Desenvolvimento Econômico (IE-UNICAMP), professor adjunto de Economia da Universidade Federal do Espírito Santo (UFES)