Com forma e conteúdo neoliberal, a terceirização é um fenômeno recente na América Latina, reflexo do modelo desnacionalizante e desindustrializante provocado pela política de desmonte do Estado iniciado nos anos 90, que traz no seu bojo a desestruturação das relações de trabalho como forma de maximização dos lucros das empresas.
Assim, se no Brasil em 1989 os assalariados representavam 64% da População Economicamente Ativa (PEA), com o avanço da “desestruturação do mercado de trabalho”, esse percentual em 1995 já havia sido reduzido a 58,2%. Capitaneado pela lógica submissa às transnacionais, o fenômeno se disseminou com ainda mais perversidade pelas economias mais débeis do nosso Continente.
A pesquisadora Josiane Falvo, da Unicamp, aponta que num cenário de baixo dinamismo, a terceirização foi o mecanismo de precarização do mercado de trabalho que mais avançou na América Latina, “provocando uma ruptura no binômio empregado-empregador, devido à presença de um intermediário”.
Além de uma resposta econômica à necessidade do capital, a terceirização também deu – e dá - sua contribuição política e ideológica às empresas e governos reacionários, pois enfraquece a ação sindical que serve como obstáculo aos seus desmandos. Fragilizadas pela perda de base, as entidades se veem em condições inferiorizadas para defender contratos de trabalho que são conquistas da classe trabalhadora ao longo de décadas. Nesta toada, direitos arrancados com greves, mobilizações e marchas, que custaram sangue, suor e cadeia como férias, repouso semanal remunerado e 13º salário, entre tantos avanços inscritos na Consolidação das Leis do Trabalho (CLT), viram alvo dos apóstolos do retrocesso.
É o que vemos quando setores neoliberais tentam a todo custo fazer com que o Congresso Nacional aprove o Projeto de Lei 4330. Em defesa deste PL escravocrata, utilizam-se da falácia de que a disseminação da terceirização redundaria em melhorias para o próprio trabalhador, que seria beneficiado pela “redução dos custos” e pelo “aumento da competitividade”. A mesma cantilena utilizada pela direita para se opor à política de valorização do salário mínimo, conquistada pela CUT e as demais centrais sindicais nas históricas marchas a Brasília.
Ao contrário do que apregoam os neoliberais, o caminho do desenvolvimento sustentável e inclusivo não será trilhado com a asfixia do mercado interno, com o arrocho de salários e a supressão de direitos. Este seria um atalho para o caos, como bem descreve Alvaro Orsatti em seu estudo “Ação Sindical ante à terceirização na América Latina e no Caribe”, onde aborda, entre outras questões, os inumeráveis abusos capitaneados pelas multinacionais em nosso Continente.
Por algo há de ser que foi no Chile do general Augusto Pinochet onde a precarização avançou mais cedo, com a “reforma laboral” de 1979 eliminando as restrições para contratistas e intermediários, o que permitiu o uso e abuso indiscriminado da terceirização. Conforme dados apresentados pela Redlat de 2008, 41% das empresas no Chile subcontrata, a maior parte na atividade principal (33%), fundamentalmente nas empresas grandes e médias (60 e 70%). No estratégico setor mineral, tomado pelas multinacionais, as vagas ocupadas pelos terceirizados eram o dobro das dos trabalhadores com plenos direitos.
No Peru, as mineradoras multinacionais foram além, com os terceirizados alcançando entre 70 a 80% das vagas em relação aos trabalhadores diretos, tendo a suíça Glencore, a canadense Barrick Gold, a britânica/australiana BHP Biliton e a chinesa Shougang entre as principais beneficiadas pelo descalabro.
No México, categorias como a dos bancários foram varridas do mapa pelos grandes grupos estrangeiros como o estadunidense City Group e os espanhóis Santander e BBVA, que chegou ao ponto de ter 99% de suas atividades terceirizadas. Na maioria dos bancos que atuam naquele país, somente os altos executivos são bancários.
As condições de saúde e segurança nas terceirizadas também é algo que beira o descalabro, tornando essas empresas sinônimo de perigo e morte. Não é à toa que a Colômbia recorda o 28 de julho como o Dia Regional contra a Terceirização Laboral. Nesta data, em 1983, perderam a vida 200 trabalhadores terceirizados contratados para construir o túnel de acesso da represa de El Guavio. Seus alertas sobre as falhas geológicas na área ecoaram na lógica do lucro fácil.
Felizmente, há exemplos que se opõem a tal lógica e que merecem ser lembrados, como o Equador e a Venezuela.
No Equador, o mandato Constituinte de junho de 2008 determina que as atividades complementares que podem ser contratadas são as alheias aos trabalhos próprios ou habituais do processo produtivo como vigilância e segurança, alimentação e limpeza. Os serviços técnicos especializados que podem ser contratados são também os alheios às atividades próprias da empresa usuária como contabilidade, publicidade, consultoria, auditoria, jurídicos e de sistemas, que devem ser prestados por pessoas físicas ou jurídicas em suas instalações e com seu próprio pessoal, que devem contar com adequada infraestrutura física e estrutura organizacional, administrativa e financeira.
E o mesmo avanço é visto na Venezuela, onde a recente Lei Orgânica dos Trabalho e dos Trabalhadores e Trabalhadoras elimina e proíbe a terceirizaᄃão, identificada como simulação ou fraude cometida pelas empresas com o único propósito de desvirtuar, desconhecer ou obstaculizar a aplicação da legislação laboral. Além da proibição da terceirização e da precarização das relações de trabalho, a Venezuela aprovou a ampliação de direitos como as licenças maternidade e paternidade, e a redução da jornada para 40 horas sem diminuição de salário. Com tais medidas, a Federação dos Trabalhadores do Petróleo, Gás, Similares e Derivados da Venezuela (FUTPV) passou de 40 mil para 103 mil filiados, projetando-se que chegue a 140 mil.
No caminho inverso, após a quebra do monopólio estatal do petróleo no Brasil, de 1999 a 2001 a Petrobrás demitiu quase 20 mil empregados efetivos (um corte de cerca de 40% dos trabalhadores), o que trouxe o aumento da terceirização. Atualmente a Petrobrás conta com cerca de 80 mil trabalhadores próprios e 360 mil terceirizados. O grave problema de saúde e segurança recai sobre os últimos, que concentram 80% dos acidentes com vítimas fatais.
Para combater esta dura e complexa realidade, herdada da submissão ao receituário do capital, precisamos aprofundar a unidade e a organização dos movimentos sindical e social, potencializando mobilizações que coloquem o mundo do trabalho no centro da nossa ação política.
Vivemos um período de radicalização da luta de classes, em que a soberania dos nossos países e povos deve ser traduzida e reafirmada em medidas que democratizem as relações de trabalho, valorizem o trabalhador e redistribuam renda. Diante da batalha pelo desenvolvimento nacional e da importância que o Brasil tem no contexto internacional, barrar o degradante PL 4330 é uma questão primordial. Para seguirmos em frente. E de cabeça erguida.
João Antonio Felício é secretário de Relações Internacionais da CUT Nacional e Maria das Graças Costa é secretária de Relações do Trabalho da CUT Nacional