Maria Lucia Fattorelli
No momento em que os jornais estampam que os juros atingem o menor nível da história, é fundamental conhecer como são definidas as distintas taxas de juros praticadas pelo mercado financeiro para empresas, pessoas e para o setor público, a fim de entender porque, apesar da Selic em queda, ainda pagamos juros elevadíssimos e somos o país que mais gasta com juros.
Enquanto toda a economia brasileira fica emperrada e definha, principalmente devido ao elevado custo do dinheiro, o único beneficiário desse gasto excessivo com juros são os bancos, que batem recordes de lucros a cada trimestre. E o maior responsável é o Banco Central do Brasil (BC).
É necessário modificar a política monetária do país e retirar o poder supremo dos bancos de decidir à vontade sobre as taxas de juros praticadas, além de proibir o alastramento do esquema fraudulento denominado “Securitização de Créditos Públicos”, que tem se mostrado como uma forma de rentismo ainda mais privilegiada e indecente.
Os juros são elevadíssimos no Brasil principalmente por dois motivos: primeiro, porque o Banco Central (BC) gera escassez de moeda na economia e segundo, porque o próprio mercado financeiro detém o poder de decidir sobre as taxas praticadas.
A escassez de moeda se dá na medida em que o BC aceita o dePorque os juros de mercado seguem altíssimos apesar da Selic em queda pósito voluntário (atualmente de cerca de R$1,1 trilhão) de todo o dinheiro que sobra no caixa dos bancos, e remunera diariamente essa montanha de dinheiro.
Diante dessa benesse, por que razão os bancos iriam correr riscos para emprestar para o público em geral, se podem receber remuneração diária e garantida pelo BC? Só emprestam a juros exorbitantes!
Não é difícil imaginar o que ocorreria se o BC interrompesse esse privilégio de remunerar diariamente toda a sobra de caixa dos bancos: é evidente que eles passariam a se esforçar mais para emprestar à sociedade em geral e as taxas de juros de mercado cairiam para patamares civilizados, como ocorre em todos os demais países do mundo.
De forma bem simplificada, poderíamos distinguir 4 grupos de taxa de juros:
Taxa Selic: Taxa básica divulgada pelo Copom, após reuniões trimestrais que o Banco Central realiza com representantes do mercado financeiro, em flagrante conflito de interesses, pois a recomendação desses especialistas é adotada sem qualquer crivo ou sequer debate por parte do Congresso Nacional.
Conforme informado pelo BC à CPI da Dívida Pública1 , a determinação da Selic não obedece a uma fórmula matemática, mas sim às mencionadas “apresentações técnicas”. Ao final, é o próprio mercado que define a taxa Selic.
Taxa de Juros sobre os títulos da dívida pública: Esta também acaba sendo definida pelos dealers – seleto grupo de instituições financeiras que detêm o privilégio de participar dos leilões de títulos da dívida pública emitidos pelo Tesouro Nacional e leiloados pelo Banco Central.
Na prática, os títulos têm sido vendidos a taxas bem superiores à Selic, pois os dealers só compram os títulos quando as taxas alcançam o patamar que desejam. Generosamente, o BC atende e lhes oferece elevadas taxas de juros.
Para citar apenas um exemplo, quando a Taxa Básica (Selic) se encontrava no patamar absurdo de 14,25%, títulos da dívida interna chegaram a ser negociados a 16,4% em 29/09/2015, as quais continuarão a ser pagas até 2023, quando vencem tais títulos!
Atualmente, apesar da Selic em 4,5%, o custo médio da dívida pública federal nos últimos 12 meses está próximo de 9% ao ano, ou seja, o dobro da Selic!
Juros exorbitantes sobre dívida pública gerada ilegalmente: Trata- -se das taxas de juros que incidem sobre a nova modalidade de geração de dívida pública ilegal, por meio do esquema da chamada “Securitização de Créditos Públicos”.
Esse esquema usa uma empresa estatal (Sociedade de Propósito Específico – SPE – a exemplo da PBH Ativos S/A em Belo Horizonte, a CPSEC S/A em São Paulo, entre outras) que emite papéis financeiros (debêntures), com garantia estatal, e oferece juros estratosféricos.
No caso da PBH Ativos S/A, esses papéis pagaram juros de 23% ao ano em 2015, calculados com base no IPCA + 11%! Esse esquema vem se alastrando por diversos estados e municípios, embora não exista autorização legal para isso, uma vez que o PLP 459/2017 e a PEC 438/2018, que visam “legalizar” esse esquema absurdo, ainda não foram aprovados no Congresso Nacional.
Essa nova forma de geração de dívida pública com juros exorbitantes segue uma engenharia financeira complexa e não transparente, para esconder o grave fato de que essa dívida ilegal é paga por fora dos controles orçamentários, mediante a entrega do fluxo de arrecadação tributária aos investidores.
Esse escândalo está virando um modelo de negócios aplicado a diversos ativos públicos relevantes (royalties do petróleo e participações especiais do pré-sal no Rio de Janeiro2 e extração de nióbio em Minas Gerais3 ).
A instituição financeira que faz a estruturação desses negócios é que indica a taxa de juros que incidirá sobre os papéis (debêntures sênior) emitidos pela empresa (ou fundo) estatal criado para operar o esquema.
Juros de mercado: O mercado financeiro cobra à vontade os juros que bem entende sobre empréstimos, cheque especial, cartão de crédito etc. Primeiro porque não há regulamentação alguma que limite os juros: cabe ressaltar que desde 2003 foi revogada a parte do Art. 192 da Constituição que limitava os juros reais ao patamar de 12%, acima do qual se configuraria a prática da usura.
Em segundo lugar, a escassez de moeda gerada pelas “Operações Compromissadas”, que têm sido usadas de forma abusiva no Brasil para remunerar a sobra de caixa dos bancos, provoca elevação brutal das taxas de juros de mercado. Por isso, o Brasil tem o maior volume de Compromissadas e a maior taxa de juros de mercado do planeta.
Em todos os quatro casos exemplificados acima, é o próprio mercado financeiro que define as taxas de juros, com a colaboração da política monetária suicida praticada pelo BC. Também são os bancos os que mais lucram com os juros, em todas as situações. Por isso, no momento, apesar da Selic em queda, seguimos sendo o país que mais gasta com juros.
A justificativa que tem sido dada para a utilização abusiva das “Operações Compromissadas” (que gera escassez de moeda na economia), aliada à aplicação de altas taxas de juros no Brasil, tem sido o “combate à inflação”, o que não se aplica, pois o tipo de inflação que temos no Brasil decorre do abusivo aumento do preço de tarifas e de alguns alimentos.
A inflação que existe no Brasil não reduz com o aumento dos juros. O controle inflacionário somente via altas taxas de juros consta do Decreto 3.088/1999, editado a mando do FMI, braço do BIS, em evidente conflito com o disposto na Lei 4.595/64 (art. 3º inciso II), que o PLP 112/2019 quer revogar para “legalizar” o procedimento adotado pelo BC.
Vivemos uma verdadeira ciranda financeira no Brasil. Nada de discussão se existem recursos orçamentários para pagar os elevados juros incidentes sobre os títulos da dívida pública; ou sequer preocupação de onde virão os recursos.
As limitações da “Lei de Responsabilidade Fiscal” não se aplicam à “política monetária”. Ou seja, se os recursos orçamentários existentes no orçamento federal não são suficientes para pagar juros, são emitidos novos títulos da dívida e esses são utilizados para pagar juros. Isso mesmo. Estamos emitindo títulos para pagar grande parte dos juros nominais incidentes sobre a dívida pública, o que fere a Constituição Federal, art. 167, III, que proíbe a contratação de dívida para pagar despesas correntes, como temos denunciado desde a CPI da Dívida em 2010.
A PEC 438/2018, em tramitação na Câmara dos Deputados, busca revogar esse dispositivo constitucional, ao mesmo tempo em que abre a possibilidade de pagamentos por fora do orçamento, por meio do esquema da Securitização de Créditos.
É por isso que denunciamos o Sistema da Dívida e exigimos a realização da auditoria. Esse poderoso esquema está provocando enorme lesão aos cofres públicos e à sociedade, além de aumentar de forma exponencial a própria dívida, comprometendo o nosso futuro.
Longe de nos aproximarmos de uma política monetária que favoreça a economia do país, o que observamos é o impressionante aumento do poder do mercado financeiro, que já não quer “apenas” os elevados juros da dívida pública e o que cobra do público em geral, mas quer se apoderar diretamente da arrecadação tributária e de outros ativos públicos (petróleo, nióbio e outros minerais, etc.) por meio do novo esquema fraudulento da chamada Securitização de Créditos Públicos, que escancara o desvio de recursos para bancos privilegiados a juros exorbitantes.
Por isso, é urgente interromper o alastramento dessa aberração, arquivando-se tanto o PLP 459/2017 como a PEC 438/2018. Adicionalmente, é preciso acabar com o poder supremo dos bancos para decidir à vontade sobre as taxas de juros praticadas, além de modificar a política monetária do país, para que o Banco Central regule a cobrança dos juros e pare de remunerar a sobra de caixa dos bancos.
* É Coordenadora Nacional da Auditoria Cidadã da Dívida (www.auditoriacidada. org.br e https://www.facebook.com/auditoriacidada.pagina). Membro da Comissão de Auditoria Oficial da Dívida Equatoriana, nomeada pelo Presidente Rafael Correa (2007/2008). Assessora da CPI da Dívida Pública na Câmara dos Deputados (2009/2010). Convidada pela Presidente do Parlamento Helênico, deputada Zoe Konstantopoulos, para integrar a Comissão de Auditoria da Dívida da Grécia em 2015.
1 Ofício 1007/2009-BCB-Secre, de 09.12.2009 e Ofício 999/2009-BCB- -Diret. 2 Ver artigo Desvio de recurso vira modelo de negócios: securitização e Rioprevidência. Disponível em https://bit. ly/36ps5Yc 3 Apresentação em audiência pública realizada pela ALMG em 25/11/2019. Disponível em https://auditoriacidada. org.br/video/fattorelli-denuncia-esquema-de-securitizacao-em-minas-gerais/