André Nepomuceno (i)
Este texto buscará tendências comuns entre o movimento dos trabalhadores no Brasil e nos Estados Unidos, diante da mutação nas formas de emprego. Essa aproximação nem sempre é visível, ainda menos a partir de elementos na editoria dos jornais especializados em business, mercados e finanças. A intenção é traçar alguns pontos e linhas sobre desafios e perspectivas – do andamento do mundo, passando pelo beija-mão do atual governo a Trump, ao simples, mas insubstituível gesto de sindicalização.
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A nova expressão do trabalho flexível gera dilemas sobre os rumos da participação sindical. A situação de grande parte dos jovens demanda entrar no jogo para a conquista de condições dignas de trabalho.
Neste contexto, as mudanças nas formas de organização sindical trazem questões que se impõem para enfrentar a incerteza do presente e as perspectivas para o futuro.
O retorno da força de trabalho muscular representa um paradigma rebaixado do emprego, ou melhor, de novas ocupações econômicas. Uma imagem que se tornou ícone disso é o uso da bicicleta para entregas (delivery) por vários aplicativos de encomendas provenientes de vários fornecedores, sem qualquer vínculo formal. Todos os riscos são para o(a) trabalhador(a). Não são raras jornadas máximas para alcançar mínimos de renda. Esse tipo de atividades crescentemente atinge também os filhos das classes médias, que permanecem na casa dos pais em estatística recorde.
O leitor observará que essa tendência é comparável, em graus variados, a recortes do trabalho doméstico, da prestação de serviços, da limpeza urbana, da construção civil, dos rurais, etc. Para não se falar dos chamados bicos.
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Fiz essa introdução, porque me despertou muito a atenção um artigo publicado por Rana Foroohar, editora de economia do Financial Times em Nova York (reproduzida no Valor Econômico de 24/09/19[ii]). Entre outros aspectos, ela ressalta a evidência de que a sindicalização tem aumentado e alcançado níveis de 50% entre os jovens norte-americanos, mesmo entre os liberais e os conservadores.
Um outro destaque é a luta desses jovens da geração Y pelo piso de U$ 15,00/h para os trabalhadores de lanchonetes – fritadores de hambúrguers incluídos –, varejo e outros empregos de baixa remuneração no setor de serviços. É revelado que esse movimento tem se tornado importante força política nos últimos sete anos.
Mais ainda, essa nova movimentação cobra de todas as candidaturas do PARTIDO DEMOCRATA nas eleições de 2020 uma legislação específica para a criação de Sindicatos Gerais – isto é, para representar diversos tipos de trabalhadores e para fortalecer o contra-ataque ao poder econômico e político do capital.
A convergência com os princípios defendidos pela CUT não é mera coincidência. A Central Única dos Trabalhadores elaborou há décadas a concepção da representação por ramo de atividade. No caso do sistema financeiro[iii], isso implica que as entidades sindicais possam negociar por todos que trabalham nos bancos, em suas subsidiárias ou empresas conexas, e nas atividades de suporte, como os serviços terceirizados. Há o objetivo de uma unificação maior, os chamados macro-setores, a envolver trabalhadores em outros serviços[iv], como os do comércio, por exemplo.
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No Brasil, a retração econômica corrói os empregos, apesar das promessas de retomada do crescimento após o Impeachment (de fato, um golpe parlamentar) em 2016, depois da Reforma Trabalhista em 2017, que trouxe a desregulação total da terceirização – ratificada em 2018 pelo STF, e agora em 2019, com a Reforma da Previdência, que agride de modo cruel o direito à aposentadoria e à proteção social desta e das futuras gerações daqueles que vivem do seu trabalho, com um embasamento técnico desonesto, quando não oculto.
Basta dizer que 82% do ajuste projetado para 1,1 trilhão de reais recairá sobre os que ganham até 2 salários mínimos. Enquanto isso, temos a isenção de cobrança sobre os dividendos, os incentivos fiscais para a pejotização indiscriminada e há no orçamento de 2019 benefícios fiscais de 376 bilhões de reais dos impostos devidos por grandes empresários, entre tantas outras distorções.
O discurso governamental é o de que se tem de escolher entre o emprego ou os direitos, mas não gera nem empregos nem direitos. O governo afirma que é muito difícil ser patrão no Brasil – um país em que a taxa de desemprego em 2014 era de 6,5%, atingiu a 13,7% em 2017, e permanece na faixa dos 13% em 2019, com 13,4 milhões de pessoas desempregadas[v], sem contar a informalidade e o desalento.
O governo que louva a subordinação a Trump, tido como o multibilionário redentor do Ocidente, é o mesmo governo que exala uma postura imperial, que seria uma caricatura, não fosse grotesca. É como se o país não tivesse seu próprio povo, sua própria história. A soberania nacional, ora tratada com perigosas fanfarronices, está longe de priorizar o desenvolvimento para toda a população.
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Na economia mundial, vê-se um aumento relativo do setor de serviços em face à ascensão das finanças nas últimas décadas e o decréscimo do setor industrial. O fator tecnológico insere-se nesse cenário. Exemplo expresso desse vínculo são as gigantes como Apple, Uber, Microsoft, para citar ligeiramente só algumas. Aliás, há uma lei na Califórnia, que determina que trabalhadores temporários, como os motoristas da Uber, sejam enquadrados como funcionários de tempo integral. Nas corporações financeiras, a tendência à universalização digital é inevitável, com óbvia repercussão no trabalho e nos perfis dos chamados colaboradores.
Em efeito dominó, meritocracia e empreendedorismo são propagandeados como panaceia. Nada contra, ressalvadas as proporções irreais, e se não fosse alimentado um individualismo cego, muitas vezes vendido como solução mágica. Nesta armadilha, não é raro trocar-se o rosto pela máscara. Se não há sucesso em empreender, o sujeito é um fracasso, um looser. Se não suplanta o seu colega, se não cumpre as metas, é culpado: não se esforçou o suficiente no vale-tudo para a performance. Cresce o adoecimento psíquico, mas falar de exaustão é mimimi. A banalização pejorativa desta expressão é injusta até com as crianças, como se não pudessem chorar e fossem condenadas a serem imbatíveis, sem cadeirinha e com arminha na mão.
É como se os humanos não tivéssemos dias bons e dias ruins, realizações e fragilidades, direito ao relax remunerado, até para enfrentar melhor o stress.
Diante desses elementos, nada haveria a imputar a esse novo modo de capitalismo?
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Seja como for, para os Sindicatos há o desafio de aumentar a inclusão.
Não é preciso partir do zero. Nossa organização tem história como protagonista. Pode e deve ser fortalecida com os novos trabalhadores, aos quais ninguém deixará de fazer o elogio do mérito pessoal.
Porém, muitas vezes não lhes foi facultado o acesso à informação de que os salários e os benefícios (tickets refeição e alimentação, PLR, auxílios, saúde e previdência complementar, entre outros) são vitórias coletivas na disputa com o capital. São conquistas materializadas na contratação dos acordos e convenções. Os próprios concursos e a abertura de vagas incluem-se como reivindicações bem-sucedidas, bem como a luta contra as demissões e pela manutenção dos direitos.
No quadro em que o liberalismo irrestrito é propalado como dogma, mas a livre organização dos trabalhadores não é dada como virtude, questionamentos aos Sindicatos não são incomuns: são politizados? como usam os recursos? o que fazem de fato? A meu ver, são mais versões do que realidade, até porque, em geral, o reconhecimento é bem mais significativo do que eventuais lacunas na atuação.
Na verdade, em boa proporção os Sindicatos são atacados, tanto na propaganda do Mercado, como na repressão do Estado. Distorcem o financiamento dos trabalhadores à sua entidade representativa e interferem na autonomia dos próprios trabalhadores em decidir como financiar seus Sindicatos. O direito de greve não é irrestrito, na prática. Isso contradiz a livre negociação entre capital e trabalho, sem interferência do Estado. Até porque não se fala de controle sobre os lucros, nem de sua flexibilização.
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Em continuação às palavras de Foroohar, há um recrudescimento das greves nos setores mais organizados, como na General Motors e na British Airways. Ainda não há uma mobilização maior nesses setores, pois os ativos dos fundos de pensão têm mantido uma rentabilidade suficiente para as aposentadorias, mas esse indicador tende a cair.
Em meio a essas constatações, a editora de economia do Financial Times defende uma economia movida pela distribuição de renda, e não de ganhos financistas que geram riqueza fictícia, pois drenam os recursos – e o trabalho –, de toda a sociedade. Como sabemos, a catastrófica crise mundial de 2008 foi decorrente da ganância de Wall-Street, e, no final das contas, assumida com dinheiro público. Sim, dinheiro dos impostos – 700 bilhões de dólares disponibilizados apenas pelo Tesouro dos EUA. É uma perversa ironia para os que se batem pela liberdade total de empreender.
A insuspeita editora alerta que o próprio mercado deveria ser atuante em promover uma economia de maior distribuição de renda e proteção social (com a assistência à saúde também incluída), valorizando de fato o chamado capital humano e de conhecimento, fundamentais para novas formas de produtividade.
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Julguei relevante a citação, pois não é comum esse tipo de análise, menos ainda sua divulgação em veículos do mercado financeiro. Decerto, não veremos isso massificado nas grandes mídias empresariais; que dizer nos programas de TV e rádio mais populares – os quais, por sinal, são produzidos por monopólios em larga medida.
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No panorama ora traçado, o Brasil tem expertise para levar aos EUA; contudo, vê-se que lá também estão sentindo essa necessidade na pele, dentro da Big Apple, que ainda é o maior símbolo no coração do capital.
Em conclusão, a sindicalização é atitude. É ter clareza de onde se está e para onde se quer ir. É fundamento para a busca coletiva de melhores negociações por empregos e salários dignos. É uma base integrada num movimento mais abrangente que prioriza os direitos humanos, que nada mais são do que a soma dos direitos trabalhistas, econômicos, sociais, políticos, das liberdades civis e individuais reunidos na Constituição, um gesto que consiste num passo concreto de um leque mais amplo de direitos.
Quem for contra, vá para os EUA!
É isso aí.
[I] É bancário do BRB, diretor da FETEC-CUT/CN e doutor em Teoria da Literatura pela UnB
[III] Neste ramo, consolidou-se a Contraf/CUT- Confederação Nacional dos Trabalhadores do Ramo Financeiro, sucedendo à CNB-Confederação Nacional dos Bancários, em 2006.
[IV] Iniciativas concretas para organizar os trabalhadores por plataformas digitais e assemelhados estão na ordem do dia no âmbito da CUT.
[V] Fonte: IBGE