* Por Emir Sader
A desqualificação do Estado serve para a direita estreitar o tamanho do país às dimensões do mercado. Quando diz que a Constituição não cabe no orçamento, ministro da Fazenda, Henrique Meirelles, está retomando o velho clichê da ingovernabilidade: os direitos reconhecidos pelo Estado não podem ser atendidos pela economia, sob o risco do fantasma a inflação e do déficit público (o lema do PP, o partido da direita espanhola, em umas eleições anteriores era: não há para todos). Se trata então de voltar a promover o cruel processo de exclusão social, de expulsão de milhões de brasileiros da esfera da cidadania, em que passaram a ser sujeitos de direitos, para povoar de novo o Mapa da fome a que buscam condenar o Brasil.
Um governo com um presidente golpista do PMDB se refere assim à Constituição que Ulysses Guimarães, o mais importante presidente desse partido, assim como presidente da Assembleia Constituinte, chamou de Constituição Cidadã, porque reconhecia direitos negados pela ditadura.
Lula diz que um avanço fundamental o seu governo, que permitiu ao Brasil sair do mapa da fome e diminuir a pobreza, a miséria, a desigualdade e a exclusão social no Brasil, foi ter incluído os pobres no orçamento, destinar recursos substanciais para as políticas sociais. O governo golpista quer excluí-los de novo.
Uma sociedade não se reduz ao mercado. O mercado só inclui os consumidores, os que possuem poder aquisitivo. E' como se a sociedade se reduzisse aos que podem frequentar os shopping centers, numa seleção que só permite o ingresso dos que podem comprar os produtos de luxo vendidos nesses templos do neoliberalismo.
A sociedade está composto por milhões de indivíduos, com suas necessidades e suas identidades. O processo democrático consiste em transforma-los em cidadãos, isto é, em sujeitos de direitos. Foi isso o que aconteceu em escala ampla no Brasil neste século e que as elites querem brecar, porque não suportam que todos tenham acesso a direitos básicos, que elas consideram privilegio seu. Porque direitos para poucos não são direitos, são privilégios.
As elites sempre governaram para poucos, para um 1/3 da população, que são os que lhes interessam como consumidores dos produtos de luxo que lhes interessam vender, como trabalhadores qualificados para suas empresas, o resto é excedente. Por isso o governo golpista pretende usar o desemprego como mecanismo de pressão sobre os salários e como variável de controle da inflação. Se milhões de pessoas diminuem seu poder de compra, diminui a pressão sobre os preços. Ao invés de retomar o desenvolvimento econômico e, com ele, o orçamento dos governos, para atender a mais e mais pessoas, o governo golpista, com seu ajuste, exclui a milhões e milhões de pessoas, as que não cabem no seu orçamento e no mercado.
Mas um ajuste dessas proporções só pode passar com repressão sistemática da resistência da população, que conquistou direitos e que não se resigna pacificamente a voltar à situação de exclusão a que sempre tinha sido submetida. Jovens não aceitam voltar a ser excluídos das universidades, mulheres voltar a ser submetidas a condições ainda mais restritivas no direito ao aborto, trabalhadores terem que sofrer os efeitos de negociações que atropelam a CLT, brasileiros que não tolerarão voltar a perder a democracia, que nos custou tanto para conquistar.
Governar para o mercado é contar apenas com o apoio do mercado, isto é, das grandes corporações, de uma ínfima minoria da população. E' adequar-se às demandas do capital financeiro, o único setor que lucra com a recessão, com o endividamento de governos, de empresas e das pessoas, o que só aprofunda a miséria e a exclusão social. Supõe a blindagem do governo pela mídia monopolista, pelo Congresso eleito pelo poder do dinheiro e pela repressão.
Democracia política só existe com democracia social, que por sua vez, para incluir a toda a população, supõe um modelo de desenvolvimento econômico com distribuição de renda, como o Brasil teve ao longo deste século. Por isso a luta atual é pela democracia, pelo desenvolvimento econômico e pela inclusão social. Pela derrubada do governo do mercado e pela eleição de um governo que governe para o Brasil.
Emir Sader, colunista do 247 é um dos principais sociólogos e cientistas políticos brasileiros