Por Jacy Afonso
A luta pela liberdade de negros e negras, iniciada por Zumbi dos Palmares, ícone da resistência negra ao trabalho escravo, jamais cessou. Decapitado em 20 de novembro de 1695, Zumbi tornou-se símbolo do combate ao preconceito. Para homenagear os que lutam pela igualdade e não deixar que situações de exploração e discriminação fossem esquecidas, o dia 20 de novembro de 1971 marcou o momento em que o Movimento Negro saiu às ruas para resgatar sua história e sua contribuição à formação da identidade nacional. Sete anos depois, em 1978, um grupo de ativistas do Movimento Negro Unificado cunhou a data de 20 de novembro como o Dia da Consciência Negra.
Séculos se passaram desde a morte de Zumbi, e a afirmação de que o Brasil não é um país racista continua uma falácia. Tragédias movidas pela discriminação envergonham nosso país. Diferenças raciais, étnicas, religiosas, nacionalidade, orientação sexual, se tornam motivos para espancamentos e assassinatos. Somos esbofeteados pelo ódio em violentas manifestações de cunho racista: jogadores de futebol e jogadoras de vôlei agredidos/as; atendentes, manicures, professores e jornalistas ofendidos; casais inter-raciais atacados nas redes sociais; jovens em grupos proibidos de entrar em shoppings e ir à praia; suspeitos de praticar furtos amarrados em postes; chacinas contra jovens negros; praticantes de religiões de matrizes africanas agredidos. Estes e a violência policial são alguns exemplos de nossa barbárie racista que empurra a sociedade brasileira aos escombros da cidadania.
O Censo de 2010 do IBGE aponta que pretos e pardos representam 50,7% da população brasileira. Pesquisa divulgada pelo Ministério da Justiça em outubro/2015 diz que em 2013 esse grupo representou 72% das vítimas de homicídio no país. Entre brancos e amarelos o índice foi de 26%.
Apesar de nos últimos vinte anos as desigualdades sociais e econômicas terem sido significativamente reduzidas por meio de políticas públicas e de ações afirmativas, as diferenças ainda são abissais. Negras e negros são os que têm menor grau de escolaridade, menos acesso à saúde, menor presença em cargos públicos e universidades, média salarial inferior, expectativa de vida menor. Por outro lado, são as maiores vítimas de assassinatos, os que representam a maior taxa de desemprego e os que mais lotam as prisões. Essas conclusões estão em relatório da ONU deste ano, escancarando que o racismo é uma questão institucional e estruturante no País. Isso concretiza o que o historiador Luiz Claudio Dias Nascimento afirma: “Ninguém nasce racista; racismo se constrói politicamente”.
O Dia da Consciência Negra é oportunidade para reaprendermos a história e a cultura negras; momento de repensarmos atitudes de uma sociedade que não aceita a população negra, exceto em situações de subordinação. A superação das ideias ultrajantes de uma organização social que alimenta estereótipos, definidos em um passado que tenta determinar o presente, é condição fundamental da democracia alicerçada na igualdade de direitos.
O Dia da Consciência Negra nos traz as lutas realizadas até a sanção do Estatuto da Igualdade e da lei que torna obrigatórias as matérias de História e Cultura Afro-Brasileira nos ensinos fundamental e médio.
Com a proposta de dar visibilidade ao tema e de promover o respeito entre todos os povos, reafirmando os direitos humanos e as liberdades fundamentais dos afrodescendentes, a ONU proclamou, de janeiro de 2015 a dezembro de 2024, a Década Internacional dos Afrodescendentes, propiciando mais uma possibilidade de reflexão e debate.
A insistência de boa parte da sociedade em manter o preconceito e as desigualdades, reforçada por algumas autoridades, além de carregar o ranço do período escravagista, estabelece clausuras que intoxicam, nos apartam e distanciam da sensação de pertencimento. O discurso sobre equidade e cidadania, exaustivamente repetido, diante de ações de violenta discriminação, se torna sórdida mentira. A aceitação ostensiva do racismo nos conduz à barbárie experimentada todos os dias de diferentes e dolorosas formas. Reafirma o que diz Bob Marley: “Enquanto a cor da pele for mais importante que a brilho dos olhos, haverá guerra”. Ou não vivemos uma guerra contra jovens, negros, moradores de rua, homossexuais, desprovidos de respeito, cidadania e dignidade?
A reinvenção da esperança, concretizada em ações políticas, institucionais e sociais, é imprescindível e urgente para a superação da barbárie e o resgate da possibilidade de construir uma nova civilização. Um país que se diz democrático e plural assegura a atuação coletiva pela convivência digna e igualitária. Todos e todas somos responsáveis pela construção de uma sociedade sem os muros da discriminação seja econômica, racial, social, regional, cultural. A dignidade coletiva define o caminho para a humanização e a cidadania.