André Nepomuceno
O farsante instalado no palácio presidencial jamais assume a responsabilidade e a dignidade do cargo. Ao contrário, a criminalidade do governo é patente na crise sanitária, mas nem tão perceptível na letalidade da sua – falta de – política econômica.
O discurso do ministro da economia é o de que o desarranjo das contas públicas, em particular pelo lado do gasto e investimento, seria a causa de um mal crônico, para o qual um severo ajuste fiscal é a panaceia para dar credibilidade.
Na sequência, as ditas reformas estruturais seriam os remédios para sinalizar ao mercado e robustecer os investimentos privados, além de transferir saldo para a rolagem da dívida financeira, cuja função é paradoxal, pois constitui despesa de tal monta que inviabiliza o próprio ajuste, gerando um círculo vicioso.
De qualquer modo, o gume dessa austeridade recai sobre a renda e os direitos dos trabalhadores, haja vista a reforma trabalhista e a previdenciária.
À parte a frieza governamental, nem sequer a recessão acentuada leva os donos do capital e seus representantes a diminuir o apetite por sacrifícios em nome de resultados ilusórios.
Boa parte deles confessa que o país está sem rumo, porém não se remetem ao marco temporal pós-2016, ao contrário da grita contra os governantes anteriores. Embora reconheçam a instabilidade, não endereçam críticas ferozes a nomes, nem partidos.
Em relação à inépcia federal, atestam o atraso das vacinas e a insegurança social, todavia, têm reservas com o auxílio emergencial e a renda mínima, enquanto elogiam o quão maravilhoso é o povo brasileiro.
Parcela da plutocracia – que faz fortuna com os juros, da dívida pública e dos praticados no mercado – e do empresariado alega cansaço pela má-gestão da crise; contudo, repisam que a economia não pode parar. Mas como, sem priorizar a vida?
Diante do desemprego recorde, pregam que os trabalhadores devem se qualificar. Por outro lado, o uso das novas tecnologias leva a demissões, e a precarização do trabalho em larga escala não demanda qualificação.
Para eles, os sindicatos buscam capturar a produtividade, mas os salários não podem aumentar, pois isso é “custo Brasil”. Há exceções, porém o coro é o de que são o setor produtivo e os geradores de emprego – como se não fosse a força de trabalho a base para a produção de valor. Por tal beneplácito, além de lucros reivindicam recompensas, muitas vezes em recurso público, o que contradiz a livre iniciativa que tanto consagram.
Quanto ao Estado indutor do desenvolvimento, com investimento público, crédito, giro do mercado interno, política de emprego, mais consumo e arrecadação eles tergiversam, pois em geral defendem as reformas neoliberais e, em maior ou menor grau, o ultraneoliberalismo ora no poder.
Para este governo, o Estado deve apenas manter um “equilíbrio mínimo” e deixar passar o mercado. Contudo, o conceito é elástico, e o mesmo Estado costuma amparar os capitalistas, a começar pelos bancos.
Por certo, a balança não pende para a justiça fiscal.
Por falar em Estado mínimo, note-se como exemplo paradigmático o corte orçamentário à realização do Censo, pois a ausência de mapeamento sistemático e fidedigno golpeia a execução das políticas públicas.
Este tipo de desídia não deságua em espaço fiscal, mas na volúpia eleitoral – por esconder indicadores muito negativos para o governo.
Talvez nada seja pior do que assistir a profissionais da saúde decidirem sobre quais pacientes de Covid priorizarão, dada a falta de insumos – para ficar no caso mais dramático da falta de oxigênio nos hospitais.
Por maior que seja o trauma, esses fatores não residem no horizonte do capitão presidente, pois o ódio é o afeto que o move. A qualquer contraditório vocifera, foge do mérito e açula suas hostes.
É nesse contexto que grandes aliados de 2018 dizem candidamente que a elite brasileira é muito ruim, não deixa o país prosperar. Alguns ensaiam arrependimento, outros sussurram que os tempos de Lula eram melhores. É um avanço.
Entretanto, qual o verdadeiro ajuste de contas diante da tragédia?
Para verificação, auscultemos o escrutínio para 2022. Os descontentes votarão num perfil emplumado e menos estridente para a gestão gourmet do austericídio ou num programa de desenvolvimento nacional pactuado? Há alternativas viáveis?
De qualquer forma, haverão que decidir, seja no primeiro ou no segundo turno. A maior dívida, irrecuperável, são as 417 mil vidas ceifadas, até o momento, que poderiam ser preservadas, não fosse a tragédia em curso regida pelas mãos sujas de sangue do governo cuja eleição apoiaram com paixão.
Noutro plano, inerente à farsa, como já dito, têm também suas digitais na explosão geométrica do desemprego, da pobreza e da fome.
A hora exige a prova de disposição para a autocrítica e para o ajuste de uma articulação ampla com os partidos e setores oposicionistas, a fim de estancar o morticínio.
Isto feito, impõe-se extirpar o farsante, sob pena de maior catástrofe, e cumplicidade.
A ver.
André Nepomuceno é doutor em Literatura pela UnB e diretor da Federação dos Bancários do Centro Norte (Fetec-CUT/CN)