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14 de Abril de 2015 às 23:00

15/04/2015 - Érica Kokay denuncia estelionato dos diretos das crianças na PEC 171


O artigo 171 do Código Penal Brasileiro tipifica o crime de estelionato: obter, para si ou para outrem, vantagem ilícita, em prejuízo alheio, induzindo ou mantendo alguém em erro, mediante artifício, ardil, ou qualquer outro meio fraudulento.

No Congresso Nacional tramita a Proposta de Emenda à Constituição 171/93, que reduz a responsabilidade legal no Brasil dos atuais 18 para 16 anos. Número e definição melhores para essa proposta não há. Ela é, em tudo, da origem à data da aprovação de sua admissibilidade - 31 de março, quando se completou 51 anos do Golpe Militar que instaurou no Brasil um dos períodos mais traumáticos de nossa história -, um estelionato aos direitos civis da população brasileira, com enorme prejuízo às nossas crianças e aos nossos adolescentes. O número da PEC, o teor e o dia em que foi aprovada a sua admissibilidade nos lembram o que ela representa de fascismo e de retirada de direitos da nossa sociedade.

Em 1988, a Assembleia Nacional Constituinte definiu em quais situações a Constituição Federal não poderia ser emendada (Artigo 60), e que não seriam sequer objeto de deliberação pelo Parlamento as propostas de emenda que objetivassem abolir (§ 4º): I - a forma federativa de Estado; II - o voto direto, secreto, universal e periódico; III - a separação dos Poderes e, IV - os direitos e garantias individuais. E é disso o que trata a PEC 171: ela retira direitos e garantias estabelecidos na Constituição para a proteção à infância e à juventude.

Quiseram os parlamentares constituintes garantir ao povo brasileiro direitos estabelecidos, que não seriam ameaçados por eventuais debates e divergências políticas, partidárias, sociais, religiosas, de opiniões ou de qualquer natureza. São compromissos que só podem ser alterados mediante a convocação de nova Assembleia Nacional Constituinte.

Os defensores da PEC 171 rasgam, pois, a Carta Magna brasileira - documento máximo que deveria reger os trabalhos no Congresso Nacional - e tentam empurrar goela abaixo da sociedade brasileira uma proposta inconstitucional, que dormitou por mais de duas décadas no Parlamento e foi despertada justamente quando temos uma das legislaturas mais conservadoras de toda a história política nacional.

Seus defensores tentam induzir a população - e o próprio Congresso - ao erro, admitindo uma proposta que sequer poderia estar em discussão por tratar de cláusula pétrea constitucional. E criam um ardil, uma falácia, tentando fazer crer que a redução da maioridade penal resultará em menos violência em nossa sociedade. Não resultará!

Ao reduzir a idade mínima de responsabilidade legal, o Brasil romperá, inclusive, tratados internacionais dos quais é signatário: é o caso da Convenção sobre os Direitos da Criança das Nações Unidas, de 1989, que considera integrantes da infância os indivíduos até os 18 anos. A maioridade penal aos 18 anos vigora em mais de 150 países, e alguns que rebaixaram essa idade mínima discutem o retorno à idade anterior, ao constatar que a medida não implicou em redução dos índices de criminalidade.

Criou-se um mito de que a violência neste país é provocada pelos adolescentes, quando, na realidade, temos o contrário. A grande maioria das vítimas dos 50 mil assassinatos registrados no Brasil todos os anos são jovens, e jovens negros. Menos de 0,5% dos homicídios neste país são cometidos por adolescentes. Então, o problema da violência no Brasil não é trazido à sociedade pela participação de nossos jovens. Essa sociedade muita mais mata os adolescentes do que é morta por eles. E é preciso que a gente tenha absoluta clareza disso.

O Brasil tem a terceira maior população carcerária do mundo, com mais de 700 mil pessoas aprisionadas, sem que esse elevado índice tenha resultado em mais segurança em nossas cidades. E a solução que o Parlamento apresenta para a sociedade é aumentar a população carcerária, ali lançando adolescentes que cometerem atos infracionais.

Temos um sistema penitenciário falido, onde 70% das pessoas que por ali passam reincidem na vida criminal. Sem ignorar toda a gama de problemas de nosso Sistema Nacional de Atendimento Socioeducativo, que vão da superlotação à ausência de oficinas e atividades pedagógicas que contribuam efetivamente no processo de ressocialização, ainda assim o índice de reincidência é de 20% entre os que cumprem medidas socioeducativas: em algumas cidades chegam a cair para menos de 2% quando essas medidas são cumpridas em meio aberto.

Portanto, querem lançar jovens a partir dos 16 anos em um universo prisional que tem reincidência 50% maior do que o sistema hoje existente para responsabilizar e reintegrar harmoniosamente adolescentes que cometem infrações. E uso responsabilizar porque quem defende a redução da maioridade penal insiste em dizer que os adolescentes que cometem crimes neste país ficam impunes. Outra falácia. O Estatuto da Criança e do Adolescente estabelece nada menos do que seis medidas socioeducativas, de acordo com a gravidade do ato cometido, para brasileiras e brasileiros em conflito com a lei a partir, não dos 16 ou dos 18, mas dos 12 anos de idade. São elas, advertência judicial, obrigação de reparar o dano, prestação de serviços à comunidade (por até seis meses), liberdade assistida (com acompanhamento mínimo de seis meses nos âmbitos familiar, escolar e comunitário), inserção em regime de semi-liberdade (com os jovens saindo das unidades para estudar e trabalhar, mas retornando à noite e passando os fins de semana com a família) e, por fim, internação (com privação de liberdade e segregação do convívio social e familiar por até três anos).

Em vez de tentar enganar a sociedade, com uma proposta que só poderia ser discutida em nova Assembleia Constituinte e que não contribuirá na construção de uma sociedade de paz, nosso Legislativo deveria se concentrar em impedir que a infância e a juventude deste país fossem roubadas, aliciadas para a violência. Deveria buscar soluções para fazermos valer a integralidade dos direitos previstos na nossa própria Constituição. O que os legisladores fazem é lançar uma cortina de fumaça para encobrir e disfarçar sua incompetência e negligência, em vez de estabelecer planos para a efetiva adoção de políticas públicas em defesa dos direitos das crianças e dos adolescentes, além das devidas prestação de contas e punição dos responsáveis, caso essas políticas não sejam executadas com total prioridade.

Neste sentido, no mesmo dia em que a Câmara Federal admitiu a tramitação da PEC 171, apresentei projeto estabelecendo a obrigatoriedade de as gestoras e os gestores - federais, estaduais, municipais e do DF - apresentarem anexos às Leis de Diretrizes Orçamentárias anuais com seus planos para a infância e juventude. Nossa proposta inclui as regras para prestação de contas semestrais aos respectivos legislativos e estabelece, em caso de descumprimento, as mesmas sanções hoje previstas na Lei de Responsabilidade Fiscal, que vão de multas e ressarcimento aos cofres públicos, à inelegibilidade por até oito anos e prisão, em caso de condenação.

É o que defendemos, além da efetiva adoção das medidas socioeducativas já estabelecidas pelo ECA aos jovens em conflito com a lei. Pois entendemos que, por trás de toda infração cometida por um adolescente, há a mão invisível de um Estado incompetente e negligente com os direitos da infância e da juventude. Trabalharemos intensamente para que a tramitação dessa proposta avance no Parlamento, ao mesmo tempo em que nos unimos a mais de uma centena de entidades da sociedade civil que se posicionaram frontalmente contrários à redução da maioridade penal, por todos os motivos aqui já expostos.

A batalha contra a redução da maioridade penal se dará agora na Comissão Especial, formada na Câmara para debater a proposta, durante 40 sessões, antes que a PEC seja levada à Plenário. É tempo, pois, de intensa mobilização. Sem trabalhar nesta perspectiva, o Congresso brasileiro promoverá imenso retrocesso aos direitos civis e humanos, em rota de colisão ao resto do mundo.

Erika Kokay foi presidente do sindicato dos bancários de Brasília, é psicóloga, deputada federal pelo PT-DF, integrante da Comissão de Direitos Humanos e Minorias da Câmara dos Deputados e suplente na Comissão de Constituição, Justiça e Cidadania, tendo se posicionado contrária à admissibilidade da PEC 171/93

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