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22 de Dezembro de 2017 às 07:13

Discurso contra o ódio é estratégia liberal para vender falsa pacificação


Vladimir Safatle
Folha de São Paulo

O ano de 2017 será visto, talvez, como o momento em que a política mundial tentou improvisar um caminho do meio ao aplicar o velho golpe da necessidade de moderação.

A crise mundial de 2008 mostrou que veio para não mais passar. O mundo está em crise há uma década e parece ter se adaptado a tal situação, a ponto de transformar o discurso da crise em forma normal de governo.

Em nome do combate à crise, durante estes últimos dez anos o mundo viu um conjunto impressionante de ações de desmontes de acordos sociais e direitos trabalhistas aplicadas por políticas de austeridade especializadas em punir populações e proteger elites.

Não por acaso, os índices de desigualdades subiram vertiginosamente e o desencanto social expressou-se das mais variadas formas. Os resultado econômicos medíocres desses últimos dez anos não levaram a uma mudança de rota.

Em uma situação de perda de coesão social devido ao sentimento generalizado de injustiça econômica, a estratégia geral foi apelar para o medo como afeto político central.

Os ataques terroristas foram saudados como eventos maiores com direito a veiculação mundial instantânea e massiva. Houve um tempo em que ataques terroristas eram tratados como eventos que deveriam ter o mínimo de visibilidade possível, como condição para a limitação de sua força. Este tempo definitivamente não é mais o nosso.

Pois o medo produzido pelo terrorismo foi visto como arma maior dos governos a fim de criar situações de emergência contínua nas quais a luta contra um pretenso inimigo comum passava à frente do sentimento de espoliação generalizado.

Mas essa estratégia do medo saiu do controle. O que era para ser um remédio amargo, aplicado em doses, virou um vício.

As populações assustadas agiram de forma tal a retraírem para dentro de suas fronteiras, mesmo quando isto significava ir contra a lógica do capitalismo global.

Assim, o mundo viu o Brexit inglês, a ascensão de Trump e a recrudescência de um discurso protofascista e antiliberal em economia.

Foi então que todo mundo ficou mais sensibilizado ao "ódio" e ao "populismo". Matérias extensas na mídia global, estudos acadêmicos foram mobilizados para pintar o cenário do ódio crescente ao outro.

Por outro lado, o retorno do espectro do populismo era vendido como o risco de derivas autoritárias, personalistas e irracionais. O liberalismo sempre usou o "populismo" como seu espantalho preferido. Maneira de tentar desqualificar tudo o que sairia do espectro da "governabilidade" liberal com seus embates eleitorais desprovidos de real alternativa de poder.

Mas 2017 começou com a clareza de que seria necessária outra estratégia de gestão social. Algo que permitisse levar as populações a apostar na "moderação" contra o "extremismo", no "diálogo" contra o "ódio", mesmo que esse diálogo não dispensasse doses seguras de violência do porrete quando necessário.

Assim, a França vendeu ao mundo sua alternativa de combate entre o extremismo político e a moderação, dando vitória eleitoral a Emmanuel Macron.

No Brasil, tudo indica que esse será o script ensaiado no próximo ano. Ele consiste em jogar Lula e Bolsonaro como representante dos extremos e tentar construir alguém com apelo para ocupar o centro e o fim do ódio que todos pretensamente estariam a esperar.

Como no Brasil a arte de reciclagem política é algo da ordem do infinito, a moderação pode ir de figuras como Alckmin a Marina Silva.

De toda forma, isto apenas mostra como o discurso contra o "ódio" é e sempre foi uma mera estratégia para vender o que ninguém quer como se fosse a garantia de pacificação e estabilidade.

A política é o espaço de conflitos fundamentais que não poderiam ser pacíficos. A questão sempre foi sobre quem pode agir de forma violenta, quem tem a autorização para tanto. 


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